terça-feira, 24 de agosto de 2010

Será o Islã a causa dos problemas no Oriente Médio?

Um especialista norte-americano em Oriente Médio e ex-agente da CIA, Graham Fuller, analisa os problemas entre o ocidente cristão e os países islâmicos e conclui: a causa não é a religião muçulmana, mas a política externa dos EUA. É interessante confrontar os argumentos de Fuller com os do filósofo norte-americano, Sam Harris, em seu livro "O fim da Fé". Para Harris o Islã é a causa de vários problemas no mundo contemporâneo. Vale a leitura da entrevista (e do livro) de Fuller.


Graham Fuller: “O islã não é o problema”

Em seu novo livro, o especialista em Oriente Médio recorre à história para defender que a religião não é a causa dos conflitos da região

Por ter trabalhado de 1964 a 1987 para a CIA, ter morado na Turquia, no Líbano, na Arábia Saudita, no Afeganistão e no Iêmen e falar cinco línguas árabes, o ex-espião Graham Fuller tem razões para ser considerado um especialista em Oriente Médio. Hoje, Fuller dá aulas sobre o assunto no departamento de história da Universidade Simon Fraser, em Vancouver, no Canadá, onde mora, e acaba de lançar mais um livro sobre a questão, A World Without Islam, em que argumenta que o islamismo está longe de ser a causa dos conflitos atuais entre Ocidente e Oriente. "É mais fácil culpar o islã, dizer que eles são fanáticos."

ÉPOCA – O senhor afirma que a religião não é a causa dos conflitos no Oriente Médio. Como chegou a essa conclusão? 
Graham Fuller – Desde muito cedo me interesso pelo Oriente Médio, morei lá vários anos e, na última década, tenho pensado cada vez mais sobre as raízes dos problemas da região. E muitas delas não têm relação com o islã. Especialmente depois dos atentados ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, surgiram vários artigos tentando entender qual era o problema com o Oriente Médio, com a Arábia Saudita, com o islã. Eles diziam que o islã talvez fosse a origem do problema, a questão maior. Minha primeira irritação foi com as tentativas de todos em Washington, não só políticos mas "think tanks", de escrever essas análises sobre as dificuldades desses países, da dificuldade de reformar o islã. Essas análises não deixam de ter razão, mas ninguém disse, em nenhum momento: "Espere um minuto! Não é possível que os Estados Unidos - o único super poder mundial hoje, com quase mil bases militares espalhadas pelo mundo e intervenções em praticamente tudo - tenham causado algum impacto nos acontecimentos a região?" Era isso que estava faltando de quase todos os debates nos EUA. Quanto mais eu pensava sobre isso, mais claro ficava que havia problemas no Oriente Médio; mas eles não estavam vindo do islã. O islamismo é o veículo, a bandeira, o símbolo, não a origem. Assumindo que o islã é uma bandeira, e não a causa do conflito, é preciso repensar a solução. Se o problema é o islã, a solução passa pelo Islã. Mas se o problema não é o Islã, a solução passa por outras coisas – e isso não é conveniente para o Ocidente. É mais fácil culpar o islã, dizer que eles são fanáticos.

ÉPOCA – Em seu livro, o senhor diz que o mundo teria conflitos bastante semelhantes, mesmo se o Islã não existisse e a religião predominante no Oriente Médio fosse o Cristianismo. O que, então, causa os conflitos na região?
Fuller – Há elementos geopolíticos por trás da maioria deles. Retomando a história, mesmo antes do surgimento do Cristianismo já havia conflitos entre o Oriente Médio e o Ocidente. Considerando a Grécia como o Ocidente em relação ao Império Persa, houve embates por centenas e centenas de anos. Alexandre, o Grande, por exemplo, marchando a partir da Grécia, conquistou tudo quase até a Índia, travando várias batalhas pelo domínio de Anatólia. Depois do surgimento do Cristianismo houve o conflito da Igreja Oriental em Constantinopla, hoje Istambul, com a Igreja Ocidental, em Roma. Os dois lados eram católicos mas houve muita rivalidade, brigas e conflitos até que eles se dividiram completamente. Isso antes do Islamismo e depois do seu aparecimento. As Cruzadas também eram motivadas por razões políticas e econômicas. Levar a bandeira do Cristianismo para o Oriente Médio era muito conveniente para justificar uma campanha militar, mas não era exatamente a verdade. Jerusalém estava sob o domínio islâmico há 500 anos. Os cristãos levaram 500 anos para notar isso e para tomar uma atitude? Analisando o período mais moderno de colonialismo ocidental e imperialismo, europeus dominando várias partes do mundo, incluindo o Oriente Médio, e, então, há guerras pela independência dos países muçulmanos. A Primeira e a Segunda Guerras Mundiais começaram com os europeus, que acabaram arrastando o Oriente Médio para o conflito. Durante a Guerra Fria, o Oriente Médio foi novamente arrastado ao conflito entre os Estados Unidos e a União Soviética. E há também as empresas de petróleo que querem controlar o petróleo da região sem pagar. E quando o Irã tentou nacionalizar a indústria petrolífera, em 1953, as inteligência americana e britânica derrubaram o primeiro-ministro democraticamente eleito [Mohammed Mossadegh]. A região conviveu com a constante intervenção política e militar americana promovendo golpes de Estado, apoiando líderes impopulares, ditadores... A lista é interminável. E nenhum dos conflitos tem a ver com o islã.

ÉPOCA – É possível dissociar completamente o Mundo Muçulmano do Islamismo?
Fuller – É importante esclarecer que meu livro é sobre as relações entre o Oriente Médio e o Ocidente. Não estou tentando imaginar como seria o Oriente sem o islã. Estou só dizendo que, sem o islã, a relação entre o Oriente Médio e o Ocidente não seria muito diferente. Quando a região foi dominada por árabes, depois por turcos, por otomanos, os estados adotaram as políticas dos períodos anteriores. Não houve grandes mudanças. O Império Otomano cobria quase a mesma área que o Império Bizantino, que era Cristão, cobria. As relações com o Ocidente não mudaram muito. Não acho que seja o islã que esteja causando o conflito, embora seja muito conveniente para justificar a guerra. Nenhum país quer admitir que entra em guerra por causa de petróleo, com o objetivo de dominar. É sempre pela liberdade, pela democracia, pelos direitos humanos, pela cristandade ou pelo islã. Todos os Estados e religiões usam essas bandeiras, mas não devemos confundir as bandeiras com as verdadeiras causas dos conflitos.

ÉPOCA – O senhor trabalhou para a CIA entre 1965 e 1987 e viveu na Turquia, no Líbano, na Arábia Saudita, no Afeganistão e no Iêmen. Poderia imaginar que as relações entre os Estados Unidos e o Oriente Médio chegariam no ponto em que estão hoje, com duas guerras?
Fuller – Sim e não. Quem trabalhou no Oriente Médio todos aqueles anos sabia que a situação estava ficando cada vez pior. Quando voltava aos Estados Unidos, via que as pessoas não percebiam nenhuma mudanças. As pessoas diziam em Washington: "Eles estão sempre infelizes. Talvez aconteçam algumas revoltas, mas nada de mais". E assim foi por um bom tempo. Mas, de repente, um dia, tivemos o 11 de setembro. Foi um choque, mas não uma surpresa. Sabíamos que, um dia, algo ruim ia acontecer. Ninguém sabia o que, quando, onde, mas claro que seriam os elementos mais radicais os primeiros a agir numa situação desse tipo. Osama Bin Laden vinha avisando sobre os atentados há algum tempo. Não disse que ia atacar os Estados Unidos, mas vinha falando há anos sobre o ódio no Oriente Médio por causa da presença de tropas americanas na Arábia Saudita.

ÉPOCA – Mas os atentados de 11 de setembro poderiam ter sido evitados?
Fuller – Muitos problemas poderiam ter sido evitados. Os sauditas discutiram muito antes de permitir a presença americana no país. Mas concordaram sob a condição de que as tropas americanas se retirassem assim que a guerra do Kuwait acabasse. Mas elas não saíram. Isso, é claro, foi uma questão. A presença militar americana só cresceu antes dos atentados de 11 de setembro. Nesse período, os Estados Unidos apoiaram quase incondicionalmente a política israelense, o que gerou raiva em outros países do Oriente Médio. Esse ódio poderia ter sido evitado se os Estados Unidos se dispusessem a ser um intermediário equilibrado entre os dois.

ÉPOCA – Em um artigo, o senhor diz que a política externa americana é, provavelmente, a maior contribuição para a unidade do Mundo Muçulmano desde o profeta Maomé. Por quê?
Fuller – Nos dias de Maomé não havia comunicação, mas, hoje, com a internet e outros meios, o mundo islâmico - inclusive o norte da África, a Malásia, a Indonésia - sabe o que está acontecendo. Agora, quando os Estados Unidos decidem tomar uma atitude como a "guerra contra o terrorismo", todo mundo fica sabendo. Os palestinos veem na TV afegãos sendo mortos. Indonésios veem iraquianos sendo mortos. Hoje, a consciência de ser muçulmano é global. E há comunidades islâmicas nos Estados Unidos, na Europa. A maioria delas é pacífica, mas pode estar infeliz com a política americana. A identidade islâmica, portanto, é um resultado da política externa americana - e não a sua causa.

ÉPOCA – O presidente Barack Obama disse que os Estados Unidos deveriam buscar uma nova relação com o Mundo Árabe, em um discurso celebrado pela comunidade internacional, no Egito, em maio do ano passado. Há motivos para comemorar?
Fuller – Sim. Mesmo durante a campanha presidencial, estava claro que Barack Obama, até por seu histórico pessoal, tinha sensibilidade para tratar de questões étnicas e raciais. O problema é que os Estados Unidos nos últimos 50 anos ou mais se tornaram um império. E o país é, agora, como um navio petroleiro. É muito difícil mudar a sua direção. Obama pode ver o problema e querer mudar a direção. Mas vai conseguir corrigir o rumo em poucos graus. O discurso de Obama foi bom e necessário, mas criou expectativas no Mundo Árabe. E ele não tem correspondido a essas expectativas.

ÉPOCA – Embora Obama não tenha fechado a possibilidade de diálogo com o Irã, as chances de isso acontecer vêm diminuindo. E, em agosto, o almirante Mike Mullen admitiu que os Estados Unidos têm planos para um ataque ao país. Como o senhor avalia as relações dos Estados Unidos com o Irã?
Fuller – Os planos de ataque são uma notícia irrelevante. Os Estados Unidos têm planos para atacar todos os países do mundo. Não porque isso vá acontecer, mas porque essa é a função da inteligência. Muitos burocratas com muito tempo à disposição... Não fiquei particularmente interessado pela notícia. Até porque, a essa altura, depois de 30 anos de hostilidade ao Irã, há pelo menos 50 planos diferentes de atacar o Irã. A declaração foi apenas uma tentativa de elevar o tom, de intimidar.
Obama claramente quis melhorar as relações com o Irã mas a situação é muito mais complicada do que já foi. Os Estados Unidos perderam uma bela oportunidade de negociar quando o país era liderado por Mohammad Khatami, que era moderado. Mas nós nos recusamos a lidar com ele. Agora temos Mahmoud Ahmadinejad e uma situação muito pior no Irã. A situação é pior e os Estados Unidos ainda não são flexíveis o suficiente para lidar com ela.

ÉPOCA – Mas os Estados Unidos deveriam ser mais flexíveis para negociar com um líder considerado radical, como Mahmoud Ahmadinejad?
Fuller – É preciso negociar com o líder que existe, não dá para esperar vir um outro melhor. É preciso enfrentar as questões, negociar. Hoje a situação é muito mais complexa, envolve identidades, emoções, ressentimentos, os problemas psicológicos, além dos políticos.

ÉPOCA – Enquanto Obama se distanciava de Ahmadinejad, o presidente brasileiro, Lula, abriu diálogo com o iraniano, um movimento que recebeu críticas porque poderia, entre outras consequências, isolar o país no cenário político internacional. Qual a sua opinião sobre a aproximação de Brasil e Irã?
Fuller – O ato de Lula foi inspirado, criativo, corajoso, eficiente, um novo passo na diplomacia brasileira, uma forma de sair do isolamento na América do Sul e ter um papel no mundo. A aproximação do Irã e a parceria com a Turquia devem trazer outros benefícios no futuro. O mundo precisa de países maturos, razoáveis, que ajudem a dividir a responsabilidade pelos eventos globais. Nenhum país do mundo deveria ser o grande responsável pelos rumos do mundo. Nem Washington, nem China, nem Rússia, nem Brasil. Gostaria de ver mais poderes sérios e pragmáticos envolvidos na diplomacia.

ÉPOCA – Um dos esforços do Departamento de Estado americano para melhorar a relação entre o Ocidente e o Oriente Médio tem sido enviar imames americanos a países muçulmanos para falar de pluralismo religioso e tolerância nos Estados Unidos. Na semana passada, o imã Feisal Abul Rauf, responsável pelo projeto Cordoba House, a ampliação da mesquita próxima ao Marco Zero, em Nova York, estava em uma dessas missões. Como o senhor vê essa iniciativa do governo americano?
Fuller – O papel dos imames é muito importante, especialmente aqueles que cresceram na cultura ocidental e a entendem. Os muçulmanos nascidos no Ocidente podem ser fundamentais na construção de um diálogo com o Mundo Árabe. Desde que esses imames não sejam vistos como instrumentos de Washington e mantenham sua credibilidade. Precisam manter sua independência, sua voz – não fazer parte de um programa do governo americano. Não estou dizendo que, em princípio, a ideia do governo não é boa. Mas, hoje em dia, há tantas suspeitas sobre a intenção dos Estados Unidos que alguns podem acreditar que é apenas mais uma desculpa para pressão e intervenção. Alguns imames ocidentais podem manchar suas reputações se forem ao Oriente Médio em viagens pagas pelo governo americano. É importante que eles vão para lá, mas é melhor que vão como indivíduos e enriqueçam o pensamento sobre a religiosidade no mundo muçulmano.

ÉPOCA – O senhor acredita que a polêmica em torno da construção da mesquita pode abalar ainda mais a relação já estremecida entre os Estados Unidos e o Oriente Médio?
Fuller – A fúria e a controvérsia a respeito da mesquita em Nova York e a tentativa de criar um dia para queimar o Corão em outros estados americanos ajudam a destruir mais e mais a imagem dos Estados Unidos perante o Mundo Árabe. É bastante prejudicial.

ÉPOCA – Pressionado a falar sobre a polêmica da mesquita próxima do Marco Zero, Obama fez um discurso sobre a liberdade religiosa nos Estados Unidos. No dia seguinte, ele disse que não havia feito referência à mesquita, o que foi visto como uma meia retratação. Qual a sua opinião sobre a posição de Obama a respeito do assunto?
Fuller – Obama tem sido cauteloso demais em vários assuntos internacionais e muitos americanos progressistas têm se decepcionado com ele por causa dessa cautela constante. Mas gostei muito do fato de ele ter se posicionado a respeito da mesquita porque ele não precisaria fazê-lo. Não foi algo popular a dizer, ele não ganhou nenhum voto por isso, provavelmente perdeu alguns, por isso respeito a atitude dele. Ele sabia o que estava dizendo e só espero que ele não se torne, de novo, cauteloso demais, porque é uma questão importante de princípios.

ÉPOCA – Qual a sua opinião sobre o projeto da mesquita que vem causando tanta celeuma?
Fuller – Em primeiro lugar é preciso lembrar que a mesquita está lá há muitos anos e o projeto atual é apenas uma expansão. E uma expansão para unir as três religiões monoteístas. É importante lembrar que o prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, que é judeu, apoiou veementemente o centro, assim como vários rabinos. Eles se lembram dos dias em que os judeus eram proibidos de construir sinagogas nos Estados Unidos. O projeto, a longo prazo, é ótimo, mas o momento para a sugestão é delicado porque a questão seria politizada.

ÉPOCA – Existe uma tentativa, por parte de alguns radicais americanos, de criar um dia para queimar edições do Corão em protesto à construção da mesquita. Os Estados Unidos estão ficando mais intolerantes?
Fuller – É possível encontrar pessoas em qualquer país dispostas a queimar alguma coisa. A vasta maioria dos americanos sabe que isso é estúpido e ignorante. Mas cria uma má imagem e exacerba um problema que não tem melhorado nada, mesmo durante o governo Obama.

ÉPOCA – Mas, na Suíça, a população votou, em plebiscito, contra a construção de novas minaretes. E a França proibiu o uso da burca em lugares públicos.
Fuller – Não acredito que esse resultado na Suíça tenha a ver com o islã. O islã se tornou um símbolo para os dois lados. No caso da Europa há uma situação econômica delicada, uma população envelhecendo e trabalhadores vindo de outros países. A Europa nunca foi, verdadeiramente, multicultural, e especialmente países pequenos se sentem ameaçados pela entrada de estrangeiros. Poderiam ser de qualquer lugar, da China, da Índia, do Brasil, e causariam estranhamento por ter outra cultura, outra língua, outro estilo de vida. Os europeus estão se tornando xenofóbicos e os muçulmanos estão entre os grupos de estrangeiros mais numerosos e evidentes, pelo jeito de se vestir, por exemplo. Mas acredito que a questão de fundo sejam os problemas sociais europeus. O caso da burca é um pouco diferente, porque ela é um símbolo negativo do islã. Ela não é exigida pelo Corão. Ela deixa uma má impressão para o Ocidente sobre a religião. Mas os franceses deveriam proibir essa manifestação primitiva ou deveriam deixar que ela morresse de morte natural? Será que os franceses estão proibindo a burca ou estão banindo os problemas de que ela se tornou símbolo – o problema da imigração? É um fenômeno muito mais amplo do que o islã.


Fonte: Revista ÉPOCA Online - 23/08/2010


Um breve comentário: Fuller analisa corretamente serem os conflitos entre o ocidente e o oriente médio anteriores ao Islã, mas ignora a força ideológica das religiões. Sendo um especialista em (des)informações a partir de regiões consideradas "hot spots" na linguagem da espionagem norte-americana, não considera o poder simbólico de mobilização que as religiões constituem. O ex-especialista da CIA tem razão em contestar a mera satanização do Islã, mas erra ao afirmar ser a religião islâmica inofensiva nos conflitos entre o ocidente e o oriente médio. As religiões: cristã, muçulmana e judaica, constituem um trio cuja história de conflitos está longe de poder ser ignorada.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Por que é tão difícil a fidedignidade na Internet?

Recebi o e-mail de um amigo com um texto atribuído ao cientista norte-americano Noam Chomsky. O texto faz referência a "10 técnicas de manipulação" pela mídia. Buscando checar, até onde foi possível, se a autoria do texto era mesmo de Noam Chomsky, descobri ser de um desses "teóricos" da conspiração. No sítio de Sylvain Timsit (França) encontrei as "10 técnicas", rapidamente atribuída a Chomsky em inúmeros endereços eletrônicos brasileiros.

A estratégia, por trás das "10 técnicas", é afirmar que alguém conceituado disse tal coisa a fim de atribuir credibilidade ao argumento. Essa manobra é conhecida por falácia da autoridade ou argumentum ad verecundiam no âmbito da lógica informal.

Eis, o sítio com o autor das "10 estratégias de manipulação": http://www.syti.net/Manipulations.html, infelizmente em francês.

Os argumentos são simplificadores do modo como nos comunicamos. A teoria "embutida" nas "10 estratégias" é chamada de Teoria "Hipodérmica" pelos pesquisadores em Comunicação Social. A Teoria "Hipodérmica" ganhou notoriedade a partir da Segunda Guerra Mundial, especialmente, por causa dos métodos nazistas de difusão ideológica. Contudo, estudos posteriores demonstram não ser assim que nos comunicamos e nos influenciamos, mas continuou a notoriedade da Teoria "Hipodérmica" em outros campos do saber, assumida acriticamente como verdade irrefutável.

Unindo-se o pressuposto da Teoria "Hipodérmica" (quando falo, necessariamente, controlo quem me ouve) às "10 técnicas manipulatórias" temos uma "teoria" de conspiração muito a contento dos vieses "pós-modernistas" contemporâneos onde "não há mais verdades, apenas interpretações".

Seria mais interessante que as pessoas assumissem os argumentos, a partir da compreensão clara de seus pressupostos, e não de alguém considerado como autoridade inconteste - algo que não é válido. Infelizmente não tem sido o caso na Internet e, parece, continuará assim.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

"A casa caiu"

Há tempos setores neoconservadores no Brasil divulgam pela Internet a ideia (falsa) de nos EUA os livros infantis apresentarem a Amazônia como área internacional. As justificativas apresentadas são as mais disparatadas (e, para mim, claramente belicistas).

O Ministérios das Relações Exteriores e o Senando montaram uma equipe e foram aos Estados Unidos verificarem. O que se constatou? Que não passava de "bullshit" (bobagem). Depois de muitos anos o próprio governo norteamericano resolveu rebater oficialmente as bobagens quanto a uma invasão da Amazônia por tropas estadunidenses. Para ler clique aqui.

domingo, 15 de agosto de 2010

A autoajuda é necessariamente sinônimo de panaceia?

Eu penso que podemos distinguir dois tipos de concepções de autoajuda. Uma, mais razoável, advinda do período heleno-helenístico, quando os filósofos gregos antigos fugiram de suas cidades-estados escravizadas pelo Império Alexandrino, e depois pelo Romano, buscando a liberdade no âmbito de si mesmos, a qual mais contemporaneamente deu origem à moda do “faça você mesmo”. A outra, panaceia, infelizmente tem sido onipresente na existência humana.

A autoajuda é razoável quando nos motiva em nossas próprias questões sem o qual dificilmente conseguiríamos resolvê-las. É panaceia, falsa e perigosa, quando nos convence da existência em fórmulas mágicas para todas as questões. Como, por exemplo, deixarmos de nos medicarmos no caso de doença devido à crença em uma cura instantânea.

A primeira é uma atitude que julgo interessante, embora circunstanciada. A segunda é uma crença à qual devemos manter-nos atentos criticamente. Mas em ambos os casos o exercício do discernimento é indispensável, especialmente em uma época onde a espetacularização e a banalização midiática confundem-nos.

sábado, 14 de agosto de 2010

Uma pequena homenagem a José Saramago (1922-2010)

Posso discordar das posições políticas de Saramago. Posso considerá-lo um ideólogo de velhas ideais marxistas. Posso nem mesmo apreciar sua vasta produção literária, mas afirmar como fez L’Osservatore Romano (jornal oficial do Vaticano) que ele foi um “populista extremista”, embora concorde que foi antirreligioso, e por bons motivos, é descabido.

Saramago alcançou fama internacional por meio de sua literatura, não por ser um “populista extremista”. E provocou a ira da maior instituição religiosa do planeta, especialmente, por seus dois livros: O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) e Caim (2009). L’Osservatore escreveu: "Ele dizia que perdia o sono só de pensar nas Cruzadas ou na Inquisição, esquecendo-se dos gulags, das perseguições, dos genocídios e dos samizdat (relatos de dissidentes da época soviética) culturais e religiosos". Discordo. O escritor português não disse em nenhum lugar aceitar gulags, perseguições, genocídios, samizdat ou seja lá que tipo de intolerância fosse. Aliás, é por não aceitar intolerâncias que causou a fúria do Vaticano, cuja história é exatamente contrária a de Saramago. Enquanto o escritor lusitano insistia em um mundo com mais compaixão, a maior igreja do mundo esconde casos de pedofilia, de agressões as freiras por padres, e quer esquecer as Cruzadas e a Inquisição como algo do passado, mas continua apregoando aos quatro ventos ideias absurdas do não uso de preservativos ou planejamento familiar em nome de dogmas insustentáveis, com todas as consequências em torno das doenças sexualmente transmissíveis e da miséria que assolam vários lugares do planeta.

Mas não me estenderei muito em defender Saramago porque penso que ele é maior do que o dogmatismo que tanto combateu (ainda que eu conceda que suas ideias comunistas eram caducas e potencialmente contrárias a sua visão de um mundo melhor). E também penso que uma luz lusitana apagou-se para sempre deixando o mundo um lugar com muito menos imaginação literária. Saramago não precisa de minha defesa. Ele já é parte da história no âmbito da literatura mundial. E jamais instituiu qualquer cruzada, perseguição, genocídio, gulag. O mesmo não se pode dizer da igreja-Estado. E para mim isso é que conta.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

As imposturas intelectuais da "pós-modernidade"

O físico norteamericano Alan Sokal e seu colega Jean Bricqmont escreveram um interessantíssimo relato dos abusos cometidos pelos ditos "pensadores pós-modernos". O livro gerou um debate internacional, não raro, marcado por forte emotividade, especialmente, da parte dos "pós-modernos" os quais acusaram Sokal de atacar áreas que não domina. Apesar desses apelos ad hoc por parte dos "pós-modernos" os erros, absurdos, abusos, indefinições e vaguidade apontados por ele podem ser constatados por qualquer um que tenha um mínimo de formação científica. O texto a seguir é uma resenha que explicita a obra de Sokal de forma clara. Boa leitura!


O rei vai nu

“Impostura”, de acordo com o dicionário, significa “embuste, engano artificioso; afetação de grandeza; superioridade, orgulho, confinante com a empáfia e a bazófia”. Os cientistas Alan D. Sokal (Universidade de Nova Iorque) e Jean Bricmont (Universidade Católica de Lovaina, Bélgica) sustentam que intelectuais de renome, associados à corrente convencionalmente conhecida como “pós-modernismo”, têm incorrido sistematicamente em “abusos reiterados de conceitos e termos provenientes das ciências físico-matemáticas”, a ponto de constituírem verdadeiras imposturas intelectuais. Podem ser identificados quatro tipos de abusos:
“Falar abundantemente de teorias das quais se tem, no máximo, uma vaga idéia”;
“Importar noções das ciências exatas para as ciências humanas sem dar a menor justificação empírica ou conceitual”;
“Exibir uma erudição superficial ao jogar, sem escrúpulos, termos especializados na cara do leitor, num contexto em que eles não têm pertinência alguma”; e
“Manipular frases desprovidas de sentido e se deixar levar por jogos de palavras”.

Neste polêmico livro, os autores fundamentam suas teses mediante numerosas citações, organizadas por autor (Lacan, Kristeva, Irigaray, Latour, Baudrillard, Deleuze e Guattari e Virilio) e por tema (caos, teorema de Gödel, relatividade restrita).

Sokal e Bricmont não se atêm a pequenos erros ou imprecisões isoladas ou àquelas próprias de um uso metafórico no discurso literário ou poético. Pelo contrário, nos autores analisados, as teorias e conceitos científicos jogam um papel não marginal, seja porque são usados nos fundamentos das suas teorias (Lacan e Kristeva), seja porque são precisamente o objeto de estudo (Irigaray, Latour, Deleuze e Guattari); em todo caso, seu uso contribuiu para que fossem elogiados por seu “rigor”, “extrema precisão”, “erudição surpreendente” e juízos similares.

A lista de exemplos é longa e bem documentada. Atribui-se ao psicanalista Jacques Lacan o abuso de tipo 2, quando declara, sem fundamentação lógica ou empírica, que o toro (estrutura topológica correspondente a um anel) é “exatamente a estrutura do neurótico” e que outras estruturas topológicas correspondem a outras patologias mentais. Seu uso dos números imaginários é declaradamente feito como metáfora, mas conduz a afirmações curiosas como: o “órgão eréctil (…) é igualável à raiz de -1”. Os textos em que Lacan recorre à lógica matemática, por outra parte, são considerados exemplos dos abusos 2 e 3 ao mesmo tempo: “Lacan exibe diante de não especialistas seus conhecimentos de lógica matemática; mas (…) a ligação com a psicanálise não está sustentada por lógica alguma”. Sokal e Bricmont absolvem Lacan dos abusos de tipo 1, ainda que em certos textos ele apresente uma definição incorreta de conjuntos abertos, definições sem sentido da noção de limite e de conjuntos compactos, e confunda números irracionais com imaginários.

Os trabalhos sobre lingüística e semiótica de Julia Kristeva ilustram também exemplos de abusos de tipo 2 e 3. Conceitos matemáticos delicados são introduzidos sem que se explique sua possível relação com a lingüística e revelando óbvia falta de compreensão: o axioma da escolha, que justamente permite provar a existência de conjuntos sem construi-los explicitamente, é invocado como implicando uma “noção de construtividade”; a hipótese do contínuo é mencionada, se bem que o conjunto de todos os livros possíveis seja apenas enumerável, e o muito popular teorema de Gödel é interpretado exatamente ao contrário. A intelectual feminista Luce Irigaray, por sua vez, num ensaio sobre o “subdesenvolvimento” da mecânica dos fluidos (identificados com a feminilidade), confunde a dificuldade matemática para obter soluções das equações de Navier-Stokes com a “impotência da lógica” e demonstra não compreender que são derivadas usando aproximações que excluem sua aplicação a escalas moleculares.

Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paul Virilio valem-se de abusos de tipo 1 e 4. Sokal e Bricmont selecionam extensas citações, inclusive uma de quase três páginas, em que se justapõem numerosos termos científicos (atrator estranho, exponencial, fractal, caos, singularidade, energia potencial, superfície topológica, função, partícula etc.), em parágrafos intrincados e sem concatenação lógica de argumentos, num jogo de analogias baseadas nos diferentes sentidos vagamente atribuídos a esses termos na linguagem comum.

Os escritos de Virilio são, talvez, os mais abertos à sátira. Por exemplo, no que diz respeito ao papel das velocidades, confunde velocidade com aceleração e quantidade de movimento com a equação logística. Mas Deleuze e Guattari providenciam ainda outro tipo de exemplo importante. Em suas análises de filosofia da matemática, retomam confusões devidas a Hegel (classificação errada de frações, noção de função superada há 150 anos) e fazem uma descrição obscura e complicada do cálculo infinitesimal, enquanto marcam a necessidade de uma “exposição rigorosa” de seus princípios. Aparentemente, ignoram que tal exposição existe desde o início do século passado.

O capítulo dedicado a Bruno Latour é particularmente revelador, pois ilustra os riscos de se tentar uma análise profunda a partir de uma compreensão superficial. Com o propósito de demonstrar que a teoria da relatividade restrita é uma construção social, faz uma leitura semiótica do livro Relativity, de Einstein, no qual se apresentam os argumentos baseados em trens, observadores e sinais luminosos, que todo estudante de física conhece bem. Latour engana-se e centra sua análise em elementos puramente pedagógicos da exposição de Einstein. Por exemplo, atribui grande importância à existência de três sistemas de referência a uma só vez (isso pode acontecer ocasionalmente numa exposição didática, mas a teoria trata da relação entre dois sistemas) e ao fato de os observadores serem humanos (eles são humanos nos exemplos do livro de Einstein, mas na maioria dos experimentos e fenômenos os “observadores” são instrumentos, discos de computador e até partículas elementares), e confere um papel privilegiado ao “narrador” (a teoria não tem sistema privilegiado nem “narrador”, se bem que a exposição pedagógica precise de um).

De fato, a teoria da relatividade conta com uma rica história de mal-entendidos por parte de filósofos. Os que se originam na interpretação errada de Bergson são especialmente persistentes, como fazem notar Sokal e Bricmont num capítulo muito claro e explícito. Henri Bergson, por razões puramente filosóficas, recusou-se a aceitar as noções einsteinianas de simultaneidade e tempo próprio e procurou estender o princípio de relatividade às acelerações. Seus argumentos conduzem a previsões que contradizem experiências atualmente conhecidas. No entanto, os erros bergsonianos reaparecem na obra de filósofos posteriores, como Jankélevich, Merleau-Ponty e Deleuze.

A teoria do caos é outra vítima de maltrato em livros e ensaios bastante difundidos. Sokal e Bricmont expõem e clarificam os erros mais típicos: o caos, quer dizer, a sensibilidade às condições iniciais, não marca qualquer “limite” ou cul-de-sac da ciência; pelo contrário, tem aberto novas possibilidades de pesquisa. O caos não significa o fim do determinismo (aparece em equações perfeitamente determinísticas), ainda que obrigue a adotar um sentido probabilístico da previsibilidade comparável ao adotado em mecânica estatística no último século. O caos não significa um descrédito da mecânica newtoniana, mas sim o seu renascimento. De fato, esta última, considerada o paradigma do “pensamento linear”, leva a equações não-lineares, que algumas vezes exibem caos, se bem que a mecânica quântica, considerada mais próxima do “pensamento não-linear” preconizado pelos pós-modernistas, seja exatamente linear.

O livro é escrito de forma direta, incisiva, sem ambigüidades, pedantismo, paráfrases ou elipses. Sokal e Bricmont não se interessam pelo vôo literário nem pelas sutilezas acadêmicas; querem apresentar seus pontos de vista sem dar lugar a dúvidas. Explicam pacientemente os aspectos científicos (com ajuda de uma lista de referências que pode ser de grande utilidade para os interessados em iniciar-se nesses temas) e expõem com franqueza suas intenções: “defender os cânones da racionalidade” e da honestidade intelectual. Sua posição filosófica contraria o relativismo cognitivo e questiona as teses de Popper, Quine, Kuhn e Feyerabend (que nutrem o ceticismo epistemológico) e do “programa forte” em sociologia da ciência. Essa franqueza algumas vezes chega ao limite da agressão verbal e introduz no livro um tom quase fundamentalista, que pode provocar discussões desnecessariamente marcadas pela emoção.

Mas o legado mais importante deste livro é, precisamente, o catálogo de exemplos de erros, de falta de compreensão e até de preguiça intelectual de pensadores contemporâneos, quando analisam o conhecimento científico recente e não tão recente. É um mostruário sólido, convincente, irrecusável, que tem existência independente das opiniões dos compiladores. Está ali para que cada um ajuíze Compreensivelmente, na polêmica gerada pelo livro, ninguém põe em dúvida o fato de que os erros apontados são realmente erros. As críticas referem-se antes à relevância desses escritos na obra dos autores considerados e às intenções finais de um livro como este. Sokal e Bricmont esclarecem que não ajuízam o resto das obras dos autores analisados, mas apenas as referências à física e à matemática (todavia, gostariam que outros, mais competentes, ajuizassem tendo em conta as imposturas apontadas), nem discutem se as imposturas são premeditadas ou de boa fé (o título do livro fala de “imposturas”, e não de “impostores”). E, se bem Sokal e Bricmont confessem intenções filosóficas e até políticas, elas não vêm ao caso.

Os exemplos no livro falam por si. Para alguém com uma mínima formação científica, sugerem diversas questões para debate. Será que o hiato entre as “duas culturas” de Snow foi ampliado ou fossilizado? Será que todo um setor da intelectualidade, cuja atividade se baseia no discurso, nas argumentações teóricas, no confronto de pontos de vista, está perdendo a capacidade de compreender o método científico submetido ao controle inexorável dos experimentos? Será que a analogia injustificada e as “provas” por combinação de frases sugestivas são uma metodologia aceitável nas humanidades? Será que os argumentos baseados na precedência, inerentes às pesquisas nas humanidades, degeneraram-se num princípio de autoridade que acha os erros de Hegel mais confiáveis que 150 anos de desenvolvimento matemático? (Não é isso uma regressão aos tempos em que, quando as observações discrepavam da doutrina de Aristóteles, se preferia esta última?) Ou será que um verdadeiro menosprezo pela lógica e pelos desenvolvimentos científicos tem sido instalado em estratos visíveis da intelectualidade, perpetuado por círculos nos meios de comunicação inclinados a modas ou não qualificados e amparado na falta generalizada de formação científica, na indiferença (próxima ao pedantismo dos próprios cientistas) e numa tradição humanista de tolerância e não comprometimento, que deixa nas mãos do tempo a depuração do que vale?

É indubitável que o trabalho de Sokal e Bricmont abre a oportunidade para um debate muito saudável e necessário, o qual, se for desenvolvido com grandeza, pode inclusive catalisar uma aproximação entre a ciência e as humanidades, em sua busca comum da compreensão da natureza e do espírito humano.


Por: Roberto Fernández 
        Originalmente publicado na Folha de São Paulo, Jornal de Resenhas, 11 de Abril de 1998

quarta-feira, 4 de agosto de 2010