terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Um princípio universal para uma época nonsense

Em nossa época, dentre tantas outras, marcada pelo cinismo e nonsense, o filósofo, norte-americano, John Searle propõe um princípio válido universalmente:

"Se você não for capaz de explicar algo claramente, então não o entendeu por si mesmo".

Evidentemente, os pós-modernistas de plantão revirarão os olhos em seus espíritos atarantados.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A natureza da filosofia e o seu ensino

O amigo, Prof. Desidério Murcho, escreveu um interessantíssimo artigo sobre o ensino de filosofia, enfrentando o não menos importante desafio quanto ao que define a filosofia enquanto tal. Boa leitura...


A natureza da filosofia e o seu ensino

Desidério Murcho
Universidade Federal de Ouro Preto

Introdução

Neste artigo defende-se duas idéias principais. Primeiro, que compreender a natureza aberta e especulativa da filosofia é uma condição necessária para uma compreensão fecunda do seu ensino. E segundo, que para se ter uma compreensão fecunda do ensino da filosofia é necessário distinguir cuidadosamente as competências estritamente filosóficas da informação histórica, e a leitura filosófica ativa dos textos dos filósofos da sua mera compreensão.

Abertura e especulação

A filosofia distingue-se de disciplinas como a história ou a física por apresentar poucos resultados consensuais: a maioria dos problemas centrais da filosofia continua em aberto. Não há respostas amplamente consensuais1 sobre se temos ou não livre-arbítrio, se Deus existe, quais são os fundamentos da ética, ou sobre a natureza da arte. Isto contrasta com a história, a biologia ou a física; nestas disciplinas há muitíssimos resultados amplamente consensuais.

Contudo, seria um erro pensar que nestas disciplinas não há, como em filosofia, problemas em aberto. Há problemas em aberto em todas as disciplinas, mas no caso da filosofia temos muitíssimos mais problemas em aberto do que resultados consensuais. E é até defensável que é nas fronteiras da física, por exemplo, que se encontra a verdadeira natureza da disciplina, e não na imensidão de resultados acumulados ao longo dos séculos.2

É importante compreender o que significa dizer que a maioria dos problemas centrais da filosofia continua em aberto. Esta afirmação não significa três coisas.

Em primeiro lugar, não significa que não há resultados; claro que há — as diferentes idéias defendidas pelos diferentes filósofos são resultados da filosofia. Só que não são resultados substanciais consensuais, ou seja, resultados substanciais que a generalidade dos filósofos aceite. Alguns filósofos defendem que temos livre-arbítrio, outros defendem que não temos; alguns defendem que o mal moral e natural é compatível com a existência de um Deus teísta, outros defendem que não; alguns que a arte pode ser definida, outros defendem que a arte não pode ser definida; alguns defendem que as intenções não contam na avaliação moral das ações, outros defendem que contam.

Em segundo lugar, não significa que não há alguns resultados consensuais em filosofia. Também os há, mas estes não são substanciais, no sentido em que consistem sobretudo em resultados negativos ou transversais. Os resultados negativos são a descoberta de que um determinado argumento ou teoria não funciona, como é o caso do argumento da causa primeira, ou a teoria verificacionista do significado. Os resultados transversais são o estabelecimento de distinções ou meramente instrumentais, como é o caso da distinção entre o mal natural e o mal moral, por exemplo, ou entre designadores rígidos e designadores não rígidos (outra coisa diferente, esta já substancial, é saber se os nomes próprios são designadores rígidos, como defende Kripke). Em ambos os casos, não se trata de resultados teóricos substanciais; no primeiro caso, porque se trata de resultados que nos dizem apenas o que é falso, e não o que é verdadeiro; no segundo, porque são resultados transversais, neutros quanto às discussões substanciais, ou seja, resultados que os filósofos que defendem teses opostas aceitam.

Em terceiro lugar, defender que a filosofia é fundamentalmente uma disciplina em aberto não é necessariamente o prelúdio de um elogio ao permanente "questionamento" sem rumo, ao amor pelo questionamento em si, desprezando resultados como os das ciências, que nos permitem andar de avião, curar a tuberculose ou compreender a estrutura íntima dos átomos. Na verdade, esta posição é dificilmente é sustentável. O que pretendemos quando estudamos o problema do livre-arbítrio é saber se temos ou não livre-arbítrio; queremos saber se existe Deus ou não; queremos saber se os nomes próprios são designadores rígidos ou não. Há uma diferença subtil entre querer continuar a estudar filosofia apesar de esta não nos dar resultados consensuais substanciais, e desprezar tais resultados para podermos aceitar o caráter aberto da filosofia. A segunda atitude é uma forma disfarçada de cientismo, como veremos, pois pressupõe que só vale a pena querer resultados consensuais substanciais quando temos métodos que os garantam. Pelo contrário, compreender o caráter aberto da filosofia significa querer resultados consensuais substanciais, como qualquer pessoa que faz qualquer outro estudo quer resultados, apesar de sabermos que são escassos. Mas tentamos e voltamos a tentar e voltamos a tentar. Tentamos porque queremos resultados consensuais substanciais, ainda que saibamos que a probabilidade de os obter é pequena.

O problema do ensino da filosofia

Poderá parecer que afirmar que a filosofia é uma disciplina em aberto, sem resultados substanciais consensuais, é uma forma de apoucar a disciplina, de a denegrir ou subalternizar. Contudo, como veremos, há razões para pensar que esta percepção resulta de cientismo. Em qualquer caso, é importante declarar desde já que o caráter aberto da filosofia em nada diminui o seu valor cognitivo ou social, a sua seriedade acadêmica ou escolar, ou a sua importância existencial.

Em qualquer caso, as instituições de ensino — tanto universitário como pré-universitário — estão sobretudo preparadas para ensinar aos estudantes os resultados consensuais substanciais das diferentes disciplinas das humanidades, das ciências da natureza ou da matemática. As instituições de ensino procuram apresentar aos estudantes tais resultados de modo a que este possa compreendê-los e passe a dominá-los com proficiência. Ao estudante compete unicamente compreender os resultados fundamentais da sua disciplina, e eventualmente saber aplicá-los no desempenho de uma profissão associada.

Se tentarmos aplicar este modelo de ensino à filosofia, teremos de algum modo de ultrapassar a inconveniência de não podermos em boa-fé dizer aos estudantes que a teoria do conhecimento de Kant é consensual, ou que as idéias de Nietzsche sobre a ética são amplamente aceites entre os filósofos. A solução habitual é procurar substituir a filosofia por outra coisa qualquer: pela história da filosofia, pelo ensaísmo literário ou pela especulação de caráter mais ou menos vagamente sociológico ou psicológico.

Qualquer uma destas estratégias visa evitar o escândalo de a filosofia não ser como as outras áreas disciplinares: não temos resultados substanciais amplamente consensuais para apresentar aos estudantes. A filosofia é uma disciplina especulativa, que lida com problemas que ninguém sabe resolver. Esta realidade não é apenas difícil de aceitar porque as instituições de ensino estão sobretudo vocacionadas para transmitir o conhecimento já feito aos estudantes. Há outra razão mais profunda.

Cientismo

É natural pensar que a menos que uma dada área disciplinar disponha de resultados seguros e métodos garantidos, como a física, a matemática ou a história, não vale a pena estudar essa área disciplinar. É natural identificar a solidez acadêmica de uma dada área de estudos com a quantidade de resultados substanciais que essa área produz. Chamemos "cientismo" a esta idéia. O cientismo manifesta-se na idéia de que ou a filosofia é mais ou menos como a biologia ou a história, no sentido de ter metodologias que garantam resultados substanciais definitivos ou quase definitivos, ou então a filosofia tem de ser abandonada, pelo menos nos moldes em que tradicionalmente foi feita durante séculos.

Assim, quer porque as instituições de ensino estão sobretudo vocacionadas para ensinar resultados substanciais aos estudantes, quer porque a ausência de resultados substanciais em filosofia causa algum desconforto, o ensino da filosofia levanta problemas importantes:

* Se não há resultados consensuais substanciais em filosofia, o que há exatamente para ensinar?
* Como lidar com a diversidade de teorias defendidas pelos filósofos?
* Que tipos de competências e conteúdos são centrais no ensino da filosofia?

É a estas perguntas que temos de tentar responder. Para isso, é importante caracterizar melhor a filosofia.

O que é a filosofia?


A filosofia não é uma disciplina empírica, como a história ou a física. É uma disciplina a priori ou que se faz pelo pensamento apenas. Não usamos laboratórios, estatísticas, observações telescópicas ou microscópicas. Neste aspecto, a filosofia está mais próxima da matemática, que é também uma disciplina a priori. Isto não significa que não possamos em filosofia apresentar hipóteses de caráter empírico; mas significa que se é possível testar empiricamente essas hipóteses, não são hipóteses filosóficas: são apenas hipóteses sociológicas, psicológicas, biológicas ou outras.

Apesar de a filosofia ser uma disciplina a priori, a informação empírica pode ser relevante em muitas das suas áreas. Essa informação, contudo, é geralmente fornecida pelas outras disciplinas, e não pela filosofia em si.

Podemos ilustrar o caráter a priori da filosofia considerando um problema de ética aplicada: será imoral provocar dor nos animais não humanos? Este problema não é susceptível de ser resolvido empiricamente. Mas precisamos de informação empírica para o resolver: precisamos de saber, por exemplo, que muitos animais não humanos têm sistemas nervosos como o nosso e que por isso sentem dor como nós. Esta informação empírica é fornecida pela biologia. Mas precisamos de um argumento filosófico para defender que é imoral provocar dor nos animais não humanos — ou que não é. O argumento terá de ser filosófico porque as suas premissas fundamentais são a priori, ainda que outras premissas possam ser empíricas. E essas premissas empíricas não resultam da investigação filosófica, mas sim da investigação nas disciplinas empíricas relevantes.

Do ponto de vista do cientismo, este aspecto a priori da filosofia é chocante. Parece que desqualifica a filosofia enquanto disciplina acadêmica séria. Quando se adota o cientismo, há a tendência para pensar que só a matemática, por razões que veremos depois, tem o direito de ser uma disciplina a priori. Qualquer outra investigação da realidade e do conhecimento tem de ser empírica. Contudo, esta posição é pura e simplesmente auto-refutante. Pois a própria tese de que se algo não é susceptível de investigação empírica, então não é susceptível de uma investigação acadêmica séria não é susceptível de uma investigação empírica; por outras palavras, é tipicamente uma tese filosófica — e a priori. É neste sentido que a filosofia é inevitável: qualquer argumento que vise refutar a filosofia é auto-refutante porque nunca será um argumento científico, mas sim filosófico.3

O cientismo que desconfia do caráter a priori da filosofia é uma manifestação do desconforto perante a falta de resultados consensuais. Caso em filosofia se tivesse produzido inúmeros resultados nos últimos duzentos anos, nomeadamente tecnológicos, já o caráter a priori da filosofia não seria chocante. Contudo, os problemas da filosofia existem realmente, tenhamos ou não resultados e tenhamos ou não metodologias aceitáveis do ponto de vista do cientismo. Os problemas da filosofia não desaparecem se fingirmos que não existem só porque não temos métodos empíricos que sejam vistos como científicos pelo partidário do cientismo. A filosofia não é uma invenção ociosa de problemas fantasiosos porque mesmo para mostrar que alguns problemas da filosofia são pseudoproblemas é preciso argumentar filosoficamente.

Compreende-se agora um pouco melhor por que razão tantas vezes se foge da filosofia para a história da filosofia: é que neste caso, por ser uma disciplina histórica, e como tal empírica, a seriedade acadêmica da disciplina já não fica em causa. Para usar o exemplo anterior, não se trata já de pensar diretamente sobre o problema de saber se é imoral provocar dor nos animais não humanos, problema desconfortável porque não pode ser tratado empiricamente. Em história da filosofia procura-se, antes, explicar cuidadosamente o pensamento de um dado filósofo, como Kant ou Peter Singer, sobre este tema. E agora as metodologias já são claramente reconhecíveis como aceitáveis do ponto de vista do cientismo porque são metodologias empíricas: trata-se de interpretar documentos, cotejar fontes, confrontar comentadores. Esta substituição da filosofia pela sua história tem um aspecto irônico e até divertido. É que se os filósofos tivessem os mesmos pruridos quanto ao caráter a priori da filosofia, não haveria filosofia para se poder fazer a sua história.

Em conclusão, a filosofia não é uma disciplina empírica como a física ou a história; é uma disciplina a priori como a matemática. Contudo, em filosofia não há métodos formais de prova. Na matemática estudam-se exclusivamente aqueles problemas que podem ser resolvidos recorrendo aos métodos formais da própria matemática. Em filosofia, contudo, não há quaisquer métodos formais de prova. Podemos usar a lógica, e devemos, mas a lógica é apenas instrumental: não resolve os problemas da filosofia, nem determina o que é ou não um problema filosófico. Num certo sentido, um problema é filosófico precisamente quando não há quaisquer metodologias científicas, nem formais, para tentar resolvê-lo.

Os problemas da filosofia

Esclarecida brevemente a natureza da filosofia, vejamos agora brevemente os seus elementos constituintes. A filosofia ocupa-se de problemas que se caracterizam, entre outras coisas, por não serem susceptíveis de serem estudados recorrendo a metodologias empíricas nem formais. Em termos mais positivos, os problemas da filosofia caracterizam-se por terem um caráter iminentemente conceptual.

Isto não deve ser interpretado, contudo, como significando que a filosofia se ocupa de conceitos, e não de realidades extraconceptuais; ou seja, que a filosofia se ocupa da nossa concepção da realidade e não da própria realidade. Era comum caracterizar a filosofia deste modo durante a primeira metade do séc. XX, em parte porque este modo de entender a filosofia era aceitável do ponto de vista do cientismo. Contudo, o que nos interessa realmente saber é o que é a justiça, por exemplo, e não qual é a natureza e estrutura do nosso conceito de justiça. Ou, para dar outro exemplo, queremos saber o que é o conhecimento, e não qual é a natureza e estrutura do nosso conceito de conhecimento. É verdade que, no seu labor, os filósofos esclarecem muitos conceitos. Mas a finalidade de tal trabalho é esclarecer a natureza das realidades que respondem a esses conceitos.

Assim, os problemas da filosofia têm um caráter fortemente conceptual no sentido em que não parecem susceptíveis de qualquer tipo de abordagem empírica ou formal. Isto é verdade em geral, mas poderá haver algumas exceções, que acontecem sobretudo quando a filosofia lida com áreas nascentes da ciência, ou que estão prestes a tornar-se ciência. São áreas de saudável intercepção transdisciplinar, que ocorrem quando as ciências lidam com aspectos fundacionais da realidade, ou tão gerais que têm aspectos filosóficos.

Contudo, não se deve pensar que quando as ciências empíricas abordam com sucesso áreas de problemas da filosofia conseguem efetivamente resolver os problemas filosóficos que estavam em causa. Por exemplo, a discussão filosófica sobre a natureza relativa ou absoluta do tempo tem raízes tão antigas quanto as reflexões algo crípticas de Aristóteles a esse respeito, e alimentou depois a polêmica filosófica entre Leibniz e Newton. Poder-se-ia pensar que a física moderna de Einstein resolveu o problema, declarando o tempo relativo — mas isto é falso. O sentido em que o tempo é relativo na física de Einstein não é o sentido que estava em causa na discussão filosófica sobre a natureza do tempo. Além disso, há outros problemas filosóficos sobre o tempo acerca dos quais a física nada tem a dizer, nem parece poder vir a ter algo a dizer.4

Assim, os problemas da filosofia têm uma identidade própria, ainda que em alguns casos vaga e transdisciplinar. Mas é possível distingui-los razoavelmente bem dos problemas não filosóficos. Invocando Hume, mas num sentido totalmente diverso, podemos dizer que se um problema não é susceptível de abordagem empírica nem formal, não deve ser deitado às chamas, mas antes deixado à filosofia.5

Teorias e argumentos

Para tentar resolver os problemas da filosofia os filósofos apresentam teorias — aquilo a que por vezes se chama também teses, ou perspectivas, ou até filosofias. As perspectivas dos filósofos são respostas a problemas filosóficos; os problemas podem ser reais ou ilusórios, e as teorias podem ser mais ou menos plausíveis. Mas as suas perspectivas não são como ficções literárias; são tentativas de resolver problemas que os seus proponentes viam como reais e importantes.

Tanto podemos usar o termo "teoria", como o termo "perspectiva", ou "tese", ou qualquer outro: importa é saber que estamos a falar das idéias que os filósofos defendem, distinguindo isso dos problemas que formulam e dos argumentos que usam. Independentemente do que lhes chamarmos, o importante é não usar um termo que dê logo à partida a idéia falsa de que estudar filosofia é apenas uma questão de apreciar e aplaudir as idéias dos filósofos, mas não de as discutir. Se usarmos um termo como "perspectiva", por exemplo, poderemos ser levados a pensar que cada qual tem a sua perspectiva, não fazendo sentido discuti-las para saber que perspectivas são mais plausíveis. Assim, o termo "teoria" surge como mais claramente neutro; uma teoria é uma idéia razoavelmente sofisticada e articulada que alguém defende.

Precisamente porque os problemas da filosofia são de caráter conceptual, também as teorias filosóficas o são. As teorias filosóficas não são empíricas nem formais. Distinguem-se assim das teorias da biologia ou da matemática. E, pelas mesmas razões que o cientismo tem relutância em aceitar a realidade dos problemas da filosofia, tem relutância em aceitar que uma teoria possa ser academicamente séria não sendo empírica nem formal. Mas as teorias filosóficas não são empíricas nem formais porque nenhumas teorias empíricas ou formais parecem poder resolver os problemas da filosofia. E portanto, dada a realidade dos problemas da filosofia, a teorização filosófica é o único tipo de coisa a fazer, se não quisermos fingir que os problemas não existem.

E chegamos ao aspecto central da atividade filosófica: a argumentação. Os argumentos sustentam as teorias. Isto não acontece apenas em filosofia; todas as teorias, sejam científicas, históricas ou filosóficas, se sustentam em argumentos. A diferença é que os argumentos científicos que sustentam as teorias da ciência têm tendência para desaparecer de vista, por causa dos dois aspectos que discutimos no início:

1. Por um lado, a ciência apresenta resultados, e isso é que parece interessar às pessoas, e não as razões que temos para pensar que tais teorias são verdadeiras ou aproximadamente verdadeiras. As pessoas parecem mais interessadas em compreender teorias científicas que pressupõem que são verdadeiras porque aceitam a autoridade dos cientistas do que em saber que razões têm os cientistas para pensar que são verdadeiras.

2. Por outro lado, as instituições de ensino estão vocacionadas para transmitir teorias de modo algo autoritário, como resultados consensuais que não devem ser postos em causa. E é pena, porque mesmo tendo a ciência tantos resultados importantes, os estudantes nunca compreenderão a verdadeira natureza da ciência se pensarem que é apenas um conjunto de resultados que devemos aceitar acriticamente, por mero recurso à autoridade dos cientistas.

Em filosofia, os argumentos são muitíssimo mais visíveis precisamente porque não há teorias consensuais. Por isso, não podemos fingir que ensinar filosofia é apenas uma questão de ensinar a compreender teorias. Dado que as teorias dos diferentes filósofos se contradizem entre si, é importante saber que razões tem cada um dos filósofos para pensar que a sua teoria é verdadeira; se não o fizermos, o estudante fica com a noção errada de que a filosofia é apenas uma rapsódia de teorias diferentes umas das outras.

E como se ensina isso?

Agora que caracterizamos brevemente a filosofia e os seus elementos, podemos abordar com maior rigor o problema do seu ensino. A primeira coisa óbvia é que se a filosofia é um conjunto de problemas, teorias e argumentos, ensinar filosofia é ensinar esses problemas, teorias e argumentos. Em ética, por exemplo, ensinamos o estudante a compreender o problema da fundamentação da moral, as teorias éticas conseqüencialistas, deontológicas, contratualistas e das virtudes, e os respectivos argumentos que as sustentam.

Contudo, se reduzirmos o ensino da filosofia ao ensino dos problemas, teorias e argumentos, estaremos a fazer o mesmo tipo de confusão que faz quem substitui o ensino da filosofia pelo ensino da história filosofia, para evitar o caráter aberto da filosofia. Substituir o historicismo pelo enciclopedismo filosófico não representa um passo em frente no ensino de excelência da filosofia. O que há a fazer compreende-se melhor se fizermos uma analogia entre o ensino do atletismo ou da pintura e o ensino da filosofia. O estudante de atletismo ou de pintura não pode limitar-se a compreender teorias sobre o atletismo ou a pintura; tem também de aprender a correr ou a pintar. Ou seja, não podemos limitar-nos ao "saber que", temos de ter também em vista o "saber como".

O mesmo acontece no ensino de excelência da filosofia. O estudante tem de compreender os problemas, teorias e argumentos da filosofia, tal como surgem ao longo da história da disciplina, mas tem também de saber discutir por si os problemas, teorias e argumentos da filosofia. Ou seja, tem de saber filosofar.

Mas como se ensina isso? Do mesmo modo que se ensina a pintar: praticando. O estudante tem de ser estimulado e ajudado a pensar por si nos problemas, teorias e argumentos da filosofia. Estimulado, perguntando-lhe o que pensa ele sobre o problema do livre-arbítrio, ou sobre a ética de Kant, por exemplo. E ajudado, fornecendo-lhe instrumentos filosóficos.

Que instrumentos são esses? Ironicamente, esta é uma área onde a filosofia produziu realmente resultados consensuais ao longo dos séculos. Por exemplo, podemos não saber definir a arte nem o conhecimento; mas sabemos muito mais hoje sobre definições, os seus tipos e estrutura, do que sabíamos há trezentos anos.6 Também não sabemos se os argumentos de Kant a favor da sua ética são cogentes; mas sabemos hoje muito mais sobre cogência argumentativa do que sabíamos há trezentos anos.7 Esta situação é irônica porque quando se substitui o ensino da filosofia pelo ensino da história da filosofia para evitar a ausência de resultados da filosofia, acaba-se por não ensinar os poucos resultados, de caráter instrumental, que a filosofia efetivamente produziu.

Estes instrumentos permitem ao estudante filosofar de modo sofisticado, evitando-se assim outro dos problemas do ensino da filosofia: o lugar-comum opinativo. Se não dermos aos estudantes os instrumentos corretos do filosofar, não podemos esperar deles outra coisa que não meras opiniões de senso comum quando lhes fazemos uma pergunta genuinamente filosófica. É por isso que em algumas instituições de ensino da filosofia nunca se fazem tais perguntas aos estudantes; ninguém lhes pergunta se há livre-arbítrio ou se Deus existe ou o que é a arte ou o conhecimento. Tudo o que se pede ao estudante é que comente textos de filósofos que procuram responder a esses mesmíssimos problemas, que o estudante contudo não tem o direito de discutir diretamente. Sem instrumentos filosóficos adequados, o estudante fica reduzido à mera erudição histórica ou à opinião de senso comum — dois extremos que resultam da mesmíssima deficiência no ensino da filosofia. E para evitar a opinião de senso comum, as instituições de ensino optam decididamente pela erudição histórica e pelo comentário de texto.

Contudo, não basta que o estudante domine os instrumentos críticos da filosofia. É também preciso que tenha a informação teórica relevante. Ao estudar um problema filosófico qualquer, o estudante tem de ter conhecimento dos diferentes tipos de teorias que procuram responder ao problema — e respectivas críticas. Ao estudar cuidadosamente as teorias da filosofia e respectivas críticas, o estudante está também a aprender, por ostensão, a construir teorias e a apresentar críticas. E deve ser estimulado a fazê-lo.

Neste processo, a história da filosofia não fica esquecida, nem a bibliografia primária. Pois é na história da filosofia, tanto antiga como mais recente, que se encontram formulados os problemas, teorias e argumentos da filosofia. Contudo, é preciso evitar cuidadosamente dois extremos:

1. O historicismo consiste em substituir a filosofia pela sua história. O estudante não aprende a filosofar, mas apenas a explicar as filosofias alheias, e eventualmente a reinterpretá-las infinitamente — nos piores casos, pensando que ao fazer isso está a fazer filosofia.

2. O enciclopedismo consiste em substituir a filosofia por listas de teorias. O estudante não aprende igualmente a filosofar, mas apenas a fazer tipologias de teorias.

Estes dois extremos são duas maneiras de evitar o ensino genuinamente filosófico da filosofia, precisamente porque tal ensino implica admitir que os problemas da filosofia estão em aberto.

O objetivo do ensino genuinamente filosófico da filosofia é ensinar a filosofar. O estudante saberá filosofar quando souber responder proficientemente a perguntas como as seguintes:

* O que é o conhecimento? Justifique.
* Concorda com a teoria dos universais de David Lewis? Porquê?
* Concorda com o argumento da linguagem privada de Wittgenstein? Porquê?

Isto significa que para ensinar a filosofar é preciso ensinar a ler os textos filosóficos ativa e filosoficamente.

A leitura ativa dos textos dos filósofos caracteriza-se por não ter como fim a mera compreensão das idéias dos filósofos. Ao invés, o objetivo, algo escandaloso para o partidário do cientismo, é saber se o filósofo tem razão ou não e porquê. Os textos são lidos ativamente quando o estudante se pergunta a cada passo se o filósofo tem razão, se a teoria é plausível, se os argumentos apresentados são cogentes, se as definições são aceitáveis, etc. Para poder fazer esta leitura ativa o estudante tem de ter instrumentos filosóficos.

Por outro lado, a leitura é filosófica no sentido em que um texto filosófico tem sempre muitos aspectos interessantes: aspectos estéticos, históricos, psicológicos, sociológicos, etc. Mas tem também aspectos filosóficos: formula problemas filosóficos genuínos, apresenta e defende teorias e argumentos filosóficos, e todas estas coisas têm um interesse intrinsecamente filosófico e não meramente histórico porque tais problemas estão em aberto. É neste sentido que um texto filosófico de Kant, por exemplo, tem uma atualidade que os seus textos científicos não têm; pois os seus textos científicos tratavam de problemas que entretanto foram resolvidos pela ciência, ao passo que os problemas filosóficos de que trata Kant são problemas atuais porque são problemas que ainda hoje ninguém sabe como se resolvem.

O obstáculo da autoridade

Vimos que a natureza da filosofia levanta obstáculos sérios ao seu ensino. A filosofia é fundamentalmente discussão de idéias e as instituições de ensino podem não estar vocacionadas para acolher tal coisa. Mas este não é o único obstáculo ao ensino da filosofia; a própria cultura em que estamos envolvidos pode ser um obstáculo à filosofia. Se vivermos numa cultura autoritária, teremos dificuldade em questionar os grandes filósofos do passado. Em vez de ler ativa e filosoficamente um texto filosófico, faremos uma leitura na qual nunca se investiga cuidadosamente se as idéias do filósofo são plausíveis ou se os seus argumentos são cogentes. Cada filósofo será uma espécie de paradigma incomensurável, perdendo nós o direito a procurar refutá-lo, ou criticá-lo. Essa atitude será vista como arrogância.

Contudo, não se vê Descartes, Aristóteles ou Kant a fazer apenas comentários historiográficos de textos filosóficos. Vemos, pelo contrário, que estes filósofos defendem as suas próprias idéias, e procuram eventualmente refutar ou melhorar as idéias dos seus antecessores. É isto que é fazer filosofia. Mas se vivermos numa cultura autoritária, teremos dificuldade em filosofar porque teremos dificuldade em assumir uma atitude crítica perante as idéias dos filósofos. As idéias dos filósofos serão encaradas como insusceptíveis de discussão direta e clara; por exemplo, perguntar se a teoria transcendental do tempo de Kant é plausível e se os argumentos por ele avançados a seu favor são cogentes parecerá quase uma atitude irreverente. Mas sem esta atitude, irreverente ou não, não há filosofia. Poderá haver histórias da filosofia, comentários de textos filosóficos — mas não haverá filosofia.

Numa cultura autoritária haverá a tendência para usar os filósofos como autoridades, substituindo os argumentos que deveríamos usar para defender idéias pela autoridade dos filósofos. O trabalho acadêmico em filosofia torna-se então o seguinte. Imagine-se que alguém defende ou lhe parece plausível uma dada idéia X. Numa cultura autoritária, o trabalho acadêmico consistirá nisto: essa pessoa procurará encontrar um ou mais filósofos que defendam X, ainda que vagamente. E o seu trabalho consistirá então em expor as idéias desse filósofo sobre X, sem dar grande importância aos próprios argumentos usados por esse filósofo. Afinal, não se trata realmente de discutir a plausibilidade de X com base em argumentos, mas apenas de exibir as credenciais autoritárias da idéia X.

Numa cultura autoritária, ninguém poderá disputar X, precisamente porque esta é a idéia de um grande filósofo, cujo representante distante está perante nós. Tudo o que poderemos fazer é contrapor outro filósofo igualmente famoso, que defende o contrário de X, e depois cada qual escolhe o filósofo da sua preferência. Mas a própria idéia X não pode ser discutida. Na verdade, qualquer tentativa de discussão poderá até ser mal vista. Dado que não se pode discutir idéias sem discutir argumentos, os próprios argumentos ficarão sob suspeita, e poderão ser encarados como "redutores" e "opressores". Numa cultura autoritária, não se considerará redutor nem opressor aceitar os filósofos como autoridades inquestionáveis; mas será vista com desconfiança a atividade filosófica de discutir idéias livremente.

O tipo de trabalho que acabamos de descrever é academicamente fraudulento. É o equivalente da supressão de provas em história, por exemplo, ou em biologia. Imagine-se um historiador que defende uma idéia sobre qualquer aspecto da política do séc. XV, por exemplo. Se ele apresentar apenas os documentos históricos compatíveis com tal idéia, suprimindo cuidadosamente todos os documentos históricos incompatíveis com a sua idéia, estará a cometer uma fraude acadêmica. Ora, é precisamente isso que se fará em filosofia, caso se substitua a autoridade da argumentação pela autoridade dos filósofos do passado: escolhe-se cuidadosamente os filósofos com os quais concordamos, e ignoramos os outros. Este tipo de trabalho é academicamente indefensável.

A escolha de conteúdos

Antes de terminar, é importante abordar alguns aspectos mais pragmáticos do ensino filosófico da filosofia.

Um problema recorrente no ensino da filosofia é a escolha dos conteúdos a lecionar em cada uma das cadeiras que compõem o currículo acadêmico. O que vamos lecionar em Estética, Ética, Teoria do Conhecimento, Metafísica, etc.?8 O historicismo e o enciclopedismo já referidos são duas formas a evitar de responder a este problema.

A abordagem historicista consiste em escolher um ou dois filósofos apenas que o professor geralmente conhece melhor porque os estuda na sua investigação, e reduz-se a disciplina ao que tais filósofos disseram sobre tais temas. Assim, o estudante fica sem conhecer, por exemplo, nem mesmo uma parte central da ética contemporânea — em vez disso, estuda apenas aspectos da ética de Aristóteles e de Kant, por exemplo.

A abordagem enciclopedista consiste em fazer listas de problemas, teorias e argumentos da ética, por exemplo, mas com um grau tal de generalidade que o estudante não contata realmente com qualquer um dos mais importantes filósofos da área, tanto antigos como modernos.

As duas abordagens devem ser evitadas, mas ambas têm vantagens. A abordagem historicista tem a vantagem de fazer o estudante contatar com um ou outro locus classicus da área, apesar de ignorar muitos outros. A abordagem enciclopedista tem a vantagem de dar ao estudante uma visão abrangente da disciplina, tal como ela é hoje estudada.

Uma abordagem correta concilia as vantagens de ambas, procurando evitar-lhes os defeitos. Por um lado, apresenta ao estudante aquilo a que por vezes se chama uma geografia conceptual da área. Ou seja, apresenta ao estudante um conjunto dos mais importantes problemas da área em causa, assim como das respectivas famílias de teorias, juntamente com os seus pontos fortes e fracos. Mas para cada família de teorias escolhe loci classici contrastantes, do passado ou do presente, que o estudante analisará pormenorizadamente. Assim, o estudante ganha simultaneamente uma visão abrangente e bem organizada dos problemas, teorias e argumentos da área disciplinar em causa; mas não perde o contato com a bibliografia primária. A organização conceptual dos problemas, teorias e argumentos permite ao estudante contextualizar filosoficamente os textos escolhidos; ou seja, o estudante compreende o problema que está em causa naquele texto, que tipo de teoria está em causa, que dificuldades tal tipo de teoria enfrenta, e que teorias alternativas existem.9

Conclusão

O estudante que entra numa universidade convencido de que vai poder tornar-se um filósofo e ter o mesmo tipo de atividade que têm os filósofos descobre gradualmente que afinal não é assim. Dele não se espera realmente que filosofe, nem lhe são fornecidos os instrumentos para isso. Dele espera-se apenas que compreenda as idéias dos filósofos do passado; ou que reinterprete os seus escritos; ou que se torne um especialista e defensor incondicional do seu filósofo de eleição; ou que faça qualquer outra coisa. O que não se espera dele é que tente resolver a questão de saber se há universais, por exemplo; ou se Deus existe; ou o que é a arte; ou se na ética só as intenções contam. A sua atividade acadêmica consistirá quase exclusivamente em relatórios sobre o que os filósofos pensam. Não consistirá em tentativas progressivamente mais sofisticadas para filosofar. Tal pretensão pode até ser vista como ridícula.

Contudo, não é ridículo que um estudante de pintura ou de música entre na universidade com a expectativa de aprender realmente a pintar ou a fazer música. Pode até ser incapaz de ser um pintor ou um músico de marcada originalidade. Mas as suas competências não se limitam certamente à história da pintura e da música: saberá pintar realmente, ou fazer música.

Neste artigo tentei explicar por que razão as coisas são diferentes em filosofia e como podemos mudar esse estado de coisas. Devemos encarar com naturalidade que um estudante de filosofia filosofe. Poderá ser incapaz de ser um filósofo de marcada originalidade, mas se é um estudante de filosofia tem de saber filosofar. Filosofar não é fazer relatórios mais ou menos acadêmicos sobre o que os filósofos pensam. Filosofar é fazer o que os filósofos fazem. E compete-nos a nós ensinar os estudantes a fazer isso. O que significa que temos também de aprender humildemente a fazê-lo porque muitas vezes ninguém nos ensinou tal coisa.10


Notas

1. Como a generalidade dos filósofos, Kant partilha esta perspectiva da filosofia, mas tem a particularidade de a relacionar como tipo de ensino que isso implica. Cf. o seu "Anúncio do Programa do Semestre de Inverno de 1765-1766", pp. 2:306-307, in Immanuel Kant, Theoretical Philosophy, 1755-1770 (trad. de David Walford. Cambridge: Cambridge University Press, 1992).

2. Como muitos outros cientistas, Jorge Buescu sublinha este aspecto admiravelmente no seu livro de divulgação científica O Mistério do Bilhete de
Identidade e Outras Histórias (Lisboa: Gradiva, 2001).

3. Cf. o meu artigo "Does Science Need Philosophy?" (Revista Eletrônica Informação e Cognição, v. 5, n. 2, pp. 50-58, 2006), no qual apresento o famoso argumento que Aristóteles usa no protréptico, semelhante ao argumento usado nesta passagem. Uso também um argumento semelhante no capítulo "O Tempo e a Filosofia", incluído no meu livro Pensar Outra Vez (Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006).

4. Cf. "O Tempo e a Filosofia", ibidem.

5. A passagem original de Hume é a última frase da sua Enquiry: "If we take in our hand any volume; of divinity or school metaphysics, for instance; let us ask, Does it contain any abstract reasoning concerning quantity or number? No. Does it contain any experimental reasoning concerning matter of fact and existence? No. Commit it then to the flames: for it can contain nothing but sophistry and illusion." A posição de Hume é uma das primeiras manifestações de inquietação dos filósofos perante a ausência de resultados da ciência, inquietação que teve um efeito nefasto na filosofia até muito recentemente. Evidentemente, o próprio livro de Hume teria de ser deitado às chamas, reeditando-se assim o argumento de Aristóteles, aludido na nota 3.

6. Cf. o meu verbete "Definição", in Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, org. de João Branquinho, Desidério Murcho e Nelson Gomes (S. Paulo: Martins Fontes, 2006).

7. Um argumento é cogente quando, além de ser válido e de ter premissas verdadeiras, tem premissas mais plausíveis do que a conclusão. Veja-se o meu Pensar Outra Vez (Quasi, 2006), cap. 7.

8. Veja-se o meu artigo "As Disciplinas da Filosofia", in Renovar o Ensino da Filosofia, org. de Desidério Murcho (Lisboa: Gradiva, 2003), no qual apresento brevemente alguns dos conteúdos centrais de cada uma das disciplinas filosóficas, além de distinguir as diferentes disciplinas da filosofia.

9. Com Aires Almeida, organizei a antologia Textos e Problemas de Filosofia (Lisboa: Plátano, 2006), no qual procuramos pôr em prática algo semelhante ao que está aqui brevemente explicado. Nos livros didáticos A Arte de Pensar (Lisboa: Didáctica, várias edições), procurei também pôr em prática esta abordagem do ensino da filosofia. Note-se que em ambos os casos se trata de livros para o ensino secundário português, o que significa que temos de obedecer a um programa nacional de filosofia profundamente deficiente.

10. A conferência que está na origem deste artigo foi apresentada pela primeira vez em Outubro de 2007 no I Colóquio do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, que decorreu na Universidade Federal de Uberlândia; agradeço o convite dos organizadores e o caloroso acolhimento. Agradeço muitíssimo a Gonçalo Armijos Palácios, cujas críticas severas à primeira versão desta comunicação me fizeram mudar vários aspectos importantes. Ronai Rocha discutiu comigo profundamente muitas das idéias aqui presentes, levando-me a mudar aspectos importantes, o que muito agradeço. Estas idéias foram também apresentadas na Universidade Federal de Santa Catarina, e agradeço a Frank Sauter e a Ronai Rocha o convite e o acolhimento que me deram. Finalmente, apresentei também estas idéias na Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná, cuja platéia me recebeu com imenso carinho. As idéias aqui presentes começaram a ser desenvolvidas no meu livro homônimo, A Natureza da Filosofia e o seu Ensino (Lisboa: Plátano, 2002).

Bibliografia

Almeida, A., Teixeira, C., Murcho, D., Galvão, P., Mateus, P. (2007) A Arte de Pensar: 10.º Ano. Lisboa: Didáctica.

Almeida, A., Teixeira, C., Murcho, D., Galvão, P., Mateus, P. (2008) A Arte de Pensar: 11.º Ano. Lisboa: Didáctica.

Almeida, Aires e Murcho, Desidério, orgs. (2006) Textos e Problemas de Filosofia. Lisboa: Plátano.

Buescu, Jorge (2001) O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias. Lisboa: Gradiva.

Hume, David (1777) An Enquiry Concerning Human Understanding. Edição de Selby-Bigge e P. H. Nidditch, Oxford University Press, Oxford, 1975.

Kant, Immanuel (1755) Theoretical Philosophy, 1755-1770. Trad. de David Walford. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

Kripke, Saul (1980) Naming and Necessity. Oxford: Blackwell.

Murcho, Desidério (2002) A Natureza da Filosofia e o seu Ensino. Lisboa: Plátano.

Murcho, Desidério (2002) Essencialismo Naturalizado. Coimbra: Ângelus Novus, 2002.

Murcho, Desidério (2003) "As Disciplinas da Filosofia", in Renovar o Ensino da Filosofia, org. de Desidério Murcho. Lisboa: Gradiva.

Murcho, Desidério (2006) "Definição", in Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, org. de João Branquinho, Desidério Murcho e Nelson Gomes. S. Paulo: Martins Fontes.

Murcho, Desidério (2006) "Does Science Need Philosophy?" Revista Eletrônica Informação e Cognição, v. 5, n. 2, pp. 50-58.

Murcho, Desidério (2006) Pensar Outra Vez. Vila Nova de Famalicão: Quasi.


Artigo publicado na revista Educação & Filosofia (vol. 22, n.º 44, 2008)

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Direitos Humanos na Internet

Declaração Dos Direitos Humanos
no Ciberespaço

No dia 10 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas adotou e proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em 1998, o mundo comemora o 50° aniversário dessa declaração, com eventos durante o ano todo, entre eles o 10° anual do Digital Be-In, em São Francisco.

Apresentamos, aqui, nossa minuta de proposta de uma Declaração dos Direitos Humanos no Ciberespaço, baseada nos princípios da Declaração Universal. Oferecemos este documento para debate e como um compromisso voluntário potencial que indivíduos e organizações podem assumir com relação às suas próprias orientações e ações na rede global de comunicações.

Convidamos você a participar do nosso foro de discussão sobre este documento , bem como a levá-lo ao conhecimento de indivíduos, empresas, organizações sociais e grupos políticos com os quais você tenha ligações. Abrangendo todos os que usam a Internet ou os que venham a ter a necessidade ou o desejo de usá-la no futuro, podemos fazer do ciberespaço um lugar onde se cultive o melhor do pensamento e dos ideais humanos.

Preâmbulo

Considerando o reconhecimento de que a nternet e redes relacionadas representam uma porta aberta para o desenvolvimento potencial da condição humana, inclusive liberdade, igualdade e paz mundial;

Considerando que a transição de uma sociedade baseada na propriedade para uma sociedade baseada na informação cria uma nova estrutura de poder que tem também o potencial de oprimir e explorar aqueles que não têm formação técnica ou acesso às ferramentas para a informação e comunicação;

Considerando que determinadas organizações governamentais e outras não governamentais têm tentado afirmar sua autoridade e seus valores neste lugar fora do mapa, sujeitando-o às suas leis, valores e regras específicas, muitas vezes desconsiderando diferenças culturais, credos religiosos ou as condições econômicas dos seus habitantes;

Considerando o reconhecimento de que cada pessoa tem direitos inalienáveis em virtude da sua condição humana, estando os mesmos enumerados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (Assembléia Geral das Nações Unidas, 1948), especialmente no que se refere ao advento de um mundo onde os seres humanos terão liberdade de expressão e credo e onde a ausência do medo e da escassez tenha sido proclamada como a mais alta aspiração do povo;

Considerando ser essencial, numa sociedade globalizada, que direitos humanos fundamentais se estendem para englobar o acesso à educação e conhecimento, os quais também devem ser protegidos pela lei;

Considerando vital promover a disseminação da informação como uma fonte, a qual, quando usada em comum seja multiplicada e não dividida entre seus possessores;

Considerando que os povos das várias comunidades do ciberespaço aqui afirmam sua fé nos direitos humanos fundamentais na dignidade e no valor da pessoa humana e nos direitos iguais entre homens e mulheres e que estão determinados a fomentar o progresso social e melhor padrão de vida com maior liberdade;

Considerando que um comum entendimento desses direitos e liberdades é da maior importância para a realização deste compromisso;

Por conseguinte,

Nós, cidadãos do ciberespaço

Proclamamos

ESTA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS no CIBERESPAÇO como um padrão comum de realização com a finalidade que todo indivíduo e toda organização da infra-estrutura de informação, tendo esta Declaração em mente deverá se esforçar, ensinando e educando, para promover o respeito por esses direitos e liberdades e através de medidas sucessivas, no mundo físico e on-line, assegurar seu reconhecimento universal e efetivo, entre os provedores, usuários individuais e de organizações, e as instituições humanas em geral.

Artigo 1.

As idéias e manifestações de todo ser humano merecem igual oportunidade de serem expressas, consideradas e divididas com outros, com a discrição do gerador e do receptor, direta ou indiretamente.

Artigo 2.

Todos podem usufruir dos direitos e liberdades expostos nesta Declaração, sem nenhum tipo de distinção seja de raça, cor, sexo, língua, religião, tendência política, origem social ou nacionalidade, nascimento ou outros status. Outrossim, não deverá haver distinção nos fundamentos da jurisdição física ou política, nem nos métodos de acesso à rede.

Artigo 3.

Todos têm o direito à privacidade, anonimato e segurança em transações on-line.

Artigo 4.

A divulgação de informações pessoais não poderá ser coagida por provedores nem sites e, quando requisitada, deverá ser efetuada com consentimento expresso.

Artigo 5.

Ninguém deverá se sujeitar à comunicação de massa através do sistema e-mail, sem prévia solicitação, à penetração involuntária no seu computador ou à invasão da sua privacidade através da imposição de idéias.

Artigo 6.

Enquanto toda pessoa tem direitos iguais de acesso a informações ou de entrar nas comunidades da Internet, a participação contínua nessas comunidades deverá depender de padrões de comportamento desenvolvidos e expressos dentre essas comunidades.

Artigo 7.

Leis já existentes como as de proteção a menores e consumidores se aplicam no cyberespaço, bom como no mundo físico, no entanto a instauração de um processo poderá depender de acordos entre jurisdições geográficas. Tais acordos devem respeitar os direitos básicos do indivíduo, não importando qual o sistema legal vigente.

Artigo 8.

Todos têm o direito a um recurso efetivo pela violação dos seus direitos, liberdades ou pela desapropriação fraudulenta de fundos ou informação.

Artigo 9.

Ninguém deve se sujeitar à investigação arbitrária do conteúdo ou de associações representativas através da on-line.

Artigo 10.

Todos têm igual direito a uma audiência aberta num tribunal independente e imparcial, na determinação de direitos e obrigações e de qualquer acusação criminal contra si.

Artigo 11.

Todos têm o direito a um nível básico de acesso à informação através de instituições públicas e provedores de servço.

Artigo 12.

Todos, em qualquer lugar, têm o direito de escolher uma tecnologia própria para proteger suas transações e comunicações e não podem estar sujeitos a um processo pela natureza dessa tecnologia.

Artigo 13.

Todos têm o direito à liberdade de pensamento, consciência e expressão; este direito inclui a liberdade de mudança dessas crenças e a liberdade, estando em on-line só ou em comunidade, de manifestar credo ou religião no ensino, na prática, culto e observação. Ninguém deve se sujeitar à vexação ou instauração de processo pela manifestação de suas opiniões.

Artigo 14.

Todos têm o direito de escolher o provedor de sua preferência e de trocá-lo à sua conveniência. Os que não puderem pagar pelos serviços, têm o direito de escolher serviços gratuitos e públicos, não importando a sua localização.

Artigo 15.

Ninguém pode ser arbitrariamente privado do acesso ao email, nem estar sujeito a condições injustas ou mudanças nos serviços.

Artigo 16.

Todos têm a liberdade de escolher com quem se associar on-line. Ninguém deve ser compelido a pertencer a uma comunidade ou visitar sites que não sejam de sua livre escolha.

Artigo 17.

Toda informação pessoal bem como de sua atividade on-line é uma propriedade privada de valor sob o controle de seu gerador. Todos têm o direito de determinar o valor dessa propriedade e a escolha de expô-la ou trocá-la se lhe convier.

Artigo 18.

Todos têm o direito de formar comunidades de interesse, afinidade e atividade.

Artigo 19.

Todos têm o direito ao aprendizado de novas tecnologias. Instituições públicas devem oferecer cursos básicos bem como comunicações on-line para todos. Deve ser dada atenção especial aos pobres, idosos e necessitados. A educação deve ser dirigida ao enriquecimento do indivíduo, para fortalecer a auto-estima e incentivar a independência.

Artigo 20.

Os pais têm o direito e a responsabilidade de orientar a experiência on-line de seus filhos, baseados nos seus próprios pontos de vista. Nenhuma instituição tem o direito de substituir a escolha dos pais nesse aspecto.

Artigo 21.

Todos têm o direito de distribuir sua literatura, trabalho artístico ou científico on-line, e de ter seu material protegido pelos direitos autorais.

Artigo 22.

Todos têm o direito a uma ordem social no ciberespaço, na qual os direitos e liberdades apresentados nesta Declaração possam ser totalmente usufruidos.

Artigo 23.

Todos são responsáveis por suas ações e expressões e têm direito a aceitação ou condenação pelos mesmos.

Artigo 24.

Nada que aqui foi declarado deve ser interpretado como autoridade para nenhum Estado, grupo ou pessoa que possa impingir ou interferir nestes princípios. Nenhuma entidade tem o direito de agir com o objetivo de destruir qualquer um dos direitos ou liberdades aqui declarados.

Redigido por Robert B. Gelman 12 de novembro de 1997

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O que é Fenomenologia?

Em 1996 elaborei esse pequeno ensaio como resposta a uma prova realizada no curso de Filosofia na Universidade Federal de Goiás. Eu estava no último ano do curso de graduação. Reproduzo o ensaio aqui porque pode auxiliar a quem pretenda entender melhor a construção de textos filosóficos.

1. Todo o projeto fenomelógico husserliano repousa sobre a recusa sistemática quanto à cumplicidade em relação à atitude natural - justamente porque estamos "imersos" no mundo e os pressupostos de nosso pensamento, enquanto evidentes, nos ofuscam.

2. Assim, o distanciamento de todo e quaisquer julgamentos se faz necessário para se compreender a gênese de todo o sentido do mundo - sentido originário -, o qual nós (consciência) constituímos.

3. Com a redução fenomenológica (epoché) - a suspensão da atitude natural - desvela-se o resíduo fenomenológico que é a consciência. Desvela-se que toda consciência é consciência de algo (toda consciência é intencionalidade, pois se dirige para algo) -, que o mundo material precede toda consciência, mas não é o fundamento da consciência, a consciência se inicia com o mundo, mas não se reduz ao mundo.

4. A partir da atitude fenomenológica de suspensão da atitude natural, nossa relação com o mundo não será mais a relação cúmplice e irrefletida, mas a atitude fenomenológica de descrição de todo e qualquer fenômeno, seja esse físico, psicológico, histórico, ideológico, ficcional (imaginário), onírico, rememorativo ou afetivo, ou seja, é a consciência que constitui o sentido do mundo. O mundo não é mundo sem uma consciência a qual se dirija para ele e o constitua enquanto mundo. Nossa relação com o mundo é a relação (qua atitude fenomenológica) de surpresa, reencantamento se se preferir; desvelamos um olhar para esse mundo e percebemos que não víamos o mundo antes da redução - éramos cegos e não sabíamos.

5. O desvelamento do mundo nos ensina também que o sentido desse mundo, constituído pela consciência, é transbordamento, irredutível a uma mera conceptualização racionalista (representacionalista) como a tradição cartesiana e kantiana insistiam em fazer.

6. E eis a nos depararmos com outra importante lição da redução fenomenológica: ela, que desvela o nosso olhar criativo, dinâmico, não é uma redução absoluta porque não somos uma consciência absoluta. Percebemo-nos como existentes, finitos, e talvez, pela primeira vez compreendamos a riqueza desse mesmo mundo, dessa mesma consciência, dessa dialógica transcendental, plena de nuances, viva, incomensurável.

7. Com a redução fenomenológica aprendemos que somos consciência de mundo (a consciência se dirige sempre para o mundo), que é a consciência que constitui as essências (fenômeno / objeto / noema). Que a consciência é intencionalidade (que se apresenta em muitas modalidades: reflexão, rememoração, sonho, imaginação, percepção, afetividade, intuição), que a subjetividade é objetiva, pois se dirige para o mundo (transcendental), ou mais bem dito, que a intersubjetividade é a única objetividade - que diferentes consciências constituem o real em uma trama de significados e modalidades de constituição, e é por isso, porque somos consciências encarnadas, constituintes do significado do mundo, que somos livres, pois, constituímos livremente - somos condenados à liberdade, diria Sartre. Somos condenados à liberdade de constituirmos livremente, diria Husserl.

8. Já não é mais possível nos colocarmos no mundo como se esse fosse um em-si, impermeável à consciência (realismo), ou como se o mundo fosse tão somente a idéia que dele fazemos (idealismo), pois, "o mapa não é o território" (Cf. KOZIRBSKY, Alfred. Science and Social Sanity, N.Y. Press, 1953).

domingo, 12 de outubro de 2008

As sete chaves da sabedoria

Há anos foi publicada uma matéria em um jornal no Estado de Goiás a qual foi intitulada: As sete chaves da sabedoria. A reflexão acerca dos princípios ali expostos acompanharam-me desde aquela época. Resolvi então escrevê-los aqui como uma forma de compartilhar aqueles princípios (se forem de alguma forma úteis como têm sido para mim ao longo de minha vida).

As Sete Chaves da Sabedoria

1. Doação espontânea
2. Disponibilidade total
3. Renúncia a si mesmo
4. Desapego dos bens materiais
5. Desapego das pessoas
6. O segredo do silêncio
7. Amor incondicional

Isto foi escrito muito antes da auto-ajuda invadir o mercado editorial. É uma síntese dos ensinamentos e vivências de várias pessoas excepcionais tais como: "Sâo" Francisco de Assis, Rev. Martin Luther King Jr., Mohandas Karancham "Mahatma" Gandhi, Elizabeth Fry, Teresa Neumann, dentre outros e outras.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O que dizem os filósofos?

Para quem lê em francês, eis um sítio muito bom sobre filosofia: http://jchichegblancbrude.blog.lemonde.fr/
Infelizmente para quem não leia em francês o sítio não possui tradução.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Quando a filosofia serve aos poderosos

O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. analisa os preconceitos contra os povos indígenas e apresenta o exemplo do "filósofo" Denis Rosenfield. Para assistir ao vídeo clique no título do post. Para ler a entrevista de Denis Rosenfield clique no nome em destaque.

domingo, 31 de agosto de 2008

O islã e a ciência

O islã divide a opinião dos historiadores quanto aos motivos que levaram uma das superpotências científicas do mundo medieval a desaparecerem. Basta clicar no título do post para ler a interessante matéria sobre essa controvertida questão histórica.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Budismo: filosofia ou religião?

Tenho um aluno cuja mãe é budista. Em uma de minhas aulas surgiu amistosamente a questão sobre o budismo ser ou não uma filosofia. Reproduzo a seguir um fragmento de um blog que divulga as idéias budistas. Espero que ajude a entender por que muitos vêem em idéias assim muito mais uma filosofia do que uma religião. Contudo o budismo é definido simultaneamente como: religião, filosofia e uma ciência psicológica. Vide: http://www.dharmanet.com.br/intro/dharma.php


Os Dez Preceitos:

1. Panatipata veramani sikkhapadam samadiyami
Eu tomo o preceito de abster-me de destruir criaturas vivas.

2. Adinnadana veramani sikkhapadam samadiyami
Eu tomo o preceito de abster-me de tomar o que não for dado.

3. Kamesu micchacara veramani sikkhapadam samadiyami
Eu tomo o preceito de abster-me de comportamento sexual impróprio.

4. Musavada veramani sikkhapadam samadiyami
Eu tomo o preceito de abster-me da linguagem incorreta.

5. Suramerayamajja pamadatthana veramani sikkhapadam samadiyami
Eu tomo o preceito de abster-me de bebidas e drogas intoxicantes que conduzem à desatenção.

Os cinco primeiros preceitos são recomendados para os leigos.

6. Vikalabhojana veramani sikkhapadam samadiyami
Eu tomo o preceito de abster-me de comer nos horários proibidos (isto é, após o meio dia) ( hoje apenas na escola Theravada)

7. Nacca-gita-vadita-visuka-dassana veramani sikkhapadam samadiyami
Eu tomo o preceito de abster-me de dançar, cantar, ouvir música, ver espetáculos de entretenimento.

8.Mala-gandha-vilepana-dharana-mandana-vibhusanatthana veramani sikkhapadam samadiyami
Eu tomo o preceito de abster-me de usar ornamentos, usar perfumes, e embelezar o corpo com cosméticos.

9. Uccasayana-mahasayana veramani sikkhapadam samadiyami
Eu tomo o preceito de abster-me de deitar em leitos elevados ou luxuosos.

10. Jatarupa-rajata-patiggahana veramani sikkhapadam samadiyami
Eu tomo o preceito de abster-me de aceitar ouro e prata (dinheiro).

Fonte: http://bossazen.blogspot.com/2002_03_01_archive.html

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

COMPORTAMENTO

Como filósofo e cientista social preocupo-me com o comportamento, em especial com o comportamento daqueles e daquelas que estarão à frente do nosso país. Nessa reportagem a Revista IstoÉ Independente demonstra o novo perfil de alguns estudantes universitários no Brasil.



É faculdade, mas parece colégio
Imaturidade emocional e despreparo intelectual dos alunos fazem as universidades se comportarem como escolas

Por CLAUDIA JORDÃO E VERÔNICA MAMBRINI (Edição 2023 - 11/08/2008)


MÃES A POSTOS

Na faculdade, notas, faltas e trabalhos são vigiados pelos pais, alunos chegam atrasados, conversam durante a aula e colam na prova. Educadores, por sua vez, distribuem advertências, expulsam de classe, ligam para os familiares e agendam reuniões de pais e mestres. Há cinco anos, relações nesse nível, envolvendo professores, estudantes e seus respectivos responsáveis, eram exclusividade do ensino médio. Hoje, no entanto, esse é o tom em muitas faculdades privadas Brasil afora. E não é apenas a falta de preparo emocional que leva o clima de colegial para os corredores da faculdade. Os calouros chegam com déficit de aprendizado e várias instituições têm oferecido disciplinas como português, matemática e informática com conteúdo do ensino médio. Situações como essas mostram que a universidade está deixando de trazer consigo a simbologia de rito de passagem da adolescência para a vida adulta e se transformando numa continuação do colégio.

"Percebemos que os alunos chegam cada vez mais jovens, imaturos e com problemas de formação básica", atesta a professora Vera Lúcia Stivaletti, pró-reitora de graduação da Universidade Metodista de São Paulo. Com a chegada desse "novo jovem", a educadora adaptou a instituição. Desde 2007 ela recebe pais para visitas guiadas ao campus e oferece aulas de português, matemática, informática e biologia. A resposta tem sido positiva. "Quando minha mãe veio para a reunião, meus colegas disseram que eu deveria ficar com vergonha. Mas eu acho legal", confessa Gabriela Schiovan, 17 anos, aluna de psicologia. Sua mãe, Sandra, 47, monitora as notas da filha. "É preciso complementar a faculdade", considera.


BÊ-Á-BÁ Curso superior ensina aluno a ler, escrever e fazer contas

Em instituições como a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em São Paulo, a participação paterna é incentivada antes mesmo do vestibular. Há seis anos ela organiza o "ESPM Experience", um dia voltado para o debate de cursos e mercado de trabalho. "Depois que os alunos são aprovados, organizamos reuniões com os pais e professores", diz Alexandre Gracioso, diretor nacional de graduação da ESPM. Lá e na Fundação Educacional Inaciana, em São Bernardo (SP), os pais são bem-vindos inclusive no dia do vestibular. Enquanto os alunos fazem a prova, eles vivenciam uma "inclusão acadêmica", com visita monitorada, palestras sobre o curso, carreira e mercado de trabalho. "Tentamos mostrar que aqui tratamos o aluno como um futuro profissional", diz Rivana Marino, vice-reitora de Extensão e Atividades Comunitárias. Mas essa participação tem limites. "Muitos pais ligam para saber de notas, mas acho isso prejudicial para os filhos", diz Gracioso, da ESPM.

Ao mesmo tempo que lidam com a imaturidade emocional, as universidades enfrentam o problema do despreparo intelectual. Grande parte dos alunos de primeiro ano chega ao ensino superior sem condições de aprender as novas disciplinas. O problema atinge principalmente jovens vindos de escolas públicas que vão para faculdades privadas inauguradas na última década. De 1997 a 2003, o ensino superior privado no País viveu um boom. Nesse período, o total de novos alunos cresceu 150% - de 392 mil para 1 milhão. Migraram para essas novas instituições jovens que não pontuavam em universidades públicas ou particulares de tradição. A solução foi criar, em caráter obrigatório e extracurricular, aulas com conteúdo de ensino médio. Na prática, transferiuse para o curso superior o problema da péssima formação do aluno.

A Faculdade Alfacastelo, em São Paulo, abriu as portas em 2000 e há três anos dá aulas de nivelamento, como é chamado esse reforço. Durante o primeiro ano, os calouros chegam 50 minutos antes para aprender gramática, interpretação de texto e matemática. "Vejo problemas básicos, como alunos que não sabem regra de três", diz Celso Britto, diretor institucional. O Centro Universitário Celso Lisboa, no Rio, também investe no resgate de disciplinas do ensino médio. Segundo Bruno Corrêa, coordenador de vestibular, as aulas, que ocorrem desde o início de 2007, reduziram o índice de trancamento dos cursos. "As desistências atingiam 30% das matrículas do primeiro para o segundo período", conta. O secretário de Educação Superior do Ministério da Educação, Ronaldo Mota, reconhece a má qualidade do ensino no País e apóia essas iniciativas. "Sei de casos em que o déficit de ensino foi superado", afirma. Vale lembrar: oferecer aulas de nivelamento (ou adaptação pedagógica) conta pontos para as instituições que as oferecem em avaliações do Ministério da Educação e Cultura (MEC).

domingo, 24 de agosto de 2008

O que é metafísica e qual a sua importância no pensamento filosófico?

Para quem ainda não entendeu o que é Filosofia, eis um texto cuja abordagem poderá auxiliar na compreensão da metafísica - cerne do pensamento filosófico. Embora muitos tenham decretado, ao longo dos tempos modernos, a morte da metafísica, ei-la com toda força a nos desafiar com as questões básicas desde os primórdios da humanidade. Para ler o artigo basta clicar no título do post.

sábado, 23 de agosto de 2008

Humor antidogmático

O colega Desidério Murcho, professor de filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto, traduziu um texto do filósofo inglês D. H. Mellor, sobre a importância do humor no pensamento filosófico. O texto propõe uma reflexão necessária em uma época onde os obscurantismos travestidos de seriedade assomam por todos os lugares.


8 de Agosto de 2004 · Filosofia

Absurdo, humor e filosofia
D. H. Mellor
Universidade de Cambridge

Disse o bispo Berkeley em 1710, na introdução a Princípios do Conhecimento Humano:

Em geral, inclino-me a pensar que a maior parte, senão a totalidade, das dificuldades a que até agora os filósofos têm achado graça, e que bloquearam o acesso ao conhecimento, se devem inteiramente a nós mesmos — primeiro levantamos a poeira e depois queixamo-nos que não conseguimos ver (Introdução, § 3).
Estes comentários de Berkeley parecem-me hoje em dia tão verdadeiros como o eram em 1710. Na verdade, a situação é em alguns aspectos pior hoje do que então. Para começar, é demasiado raro que os filósofos hoje achem graça às dificuldades que bloqueiam o acesso ao conhecimento. E deviam achar graça, porque a filosofia tem de lidar, entre outras coisas, com os limites do que faz sentido: isto é, com a fronteira entre o que tem e o que não tem sentido, que é o próprio âmago do humor. Tomemos este exemplo de Alice no Outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll:

— Por quem passaste na estrada? — continuou o Rei, estendendo a sua mão para o Mensageiro para lhe dar mais algum feno.
— Por ninguém — disse o Mensageiro.
— Exactamente — disse o Rei. — Esta rapariga também o viu. Portanto, é claro que Ninguém anda mais devagar do que tu.
— Faço o meu melhor — disse o Mensageiro num tom mal-humorado. — Tenho a certeza de que ninguém anda muito mais depressa do que eu!
— Ele não poderia andar mais depressa — disse o Rei —, senão teria chegado cá primeiro. (Capítulo VII)
Só um filósofo vê por que razão isto é engraçado, só um filósofo vê por que razão não faz sentido falar de Ninguém como se ele e ela (Ninguém é ao mesmo tempo do sexo masculino e feminino...) fosse um ser de um tipo qualquer. A razão, é claro, é que apesar de a palavra "Ninguém" parecer o nome de um ser, não é de facto de modo algum um nome: é um modo de dizer que não havia qualquer ser que andasse mais devagar ou mais depressa do que o Mensageiro. Ora bem, isto é um exemplo bastante trivial de análise filosófica, que qualquer pessoa pode fazer; mas, como veremos, há por aí coisas sem sentido muito mais sérias (e muito mais enganadoras) do que as de Lewis Carroll, que tornam necessária uma análise muito maior para desmascarar e explicar.

Para denunciar o que não tem sentido, contudo, temos primeiro de o descobrir; temos de ter uma sensibilidade especial ao que não tem sentido. E, como Ramsey disse sobre a proposta de Wittgenstein de que a própria filosofia é destituída de sentido, "temos então de levar a sério que não tem sentido, e não fingir, como Wittgenstein, que é um sem sentido importante" (Ramsey, "Philosophy" (1929), in Philosophical Papers, 1990). Ora bem, eu não penso que a filosofia é destituída de sentido, mas penso que inclui levar a sério o facto do sem sentido e dizer por que razão é destituído de sentido. Para isso, contudo, precisamos de achar graça às piadas como a do Ninguém, e de distinguir a atitude de as levar a sério da atitude de fingir que são importantes. Mas nem todos os filósofos acham graça. Receio que alguns não tenham o sentido de humor sério, nem uma sensibilidade especial ao que não tem sentido, de que a boa filosofia precisa. E isso é um defeito muito sério. Pois sem uma sensibilidade especial ao que não tem sentido, os filósofos correm um risco muito real de dizerem eles próprios coisas sem sentido, e (ao contrário de Lewis Carroll) de se persuadirem a si mesmos e aos outros de que se trata de um sem sentido importante.

Nada disto teria muita importância se a filosofia fosse lida e avaliada apenas por outros filósofos, como acontece com a matemática e os matemáticos que, em termos gerais, conseguem perceber quando os seus colegas estão a dizer coisas sem sentido. Mas não o é, ainda que talvez o devesse ser, dado que a filosofia, como a matemática, não é realmente um espectáculo que atraia mais espectadores do que praticantes — ou seja, a filosofia não é como a poesia, por exemplo, em que não temos de ser poetas para ajuizar a poesia, ao passo que precisamos de ser um filósofo para ajuizar a filosofia, tal como temos de ser matemáticos para ajuizar a matemática. É claro que a filosofia, como a matemática, é lida por pessoas que lhe são estranhas, que não querem avaliá-la, mas antes confiar nela e usá-la, tal como os físicos usam a matemática. Mas não há muitas pessoas estranhas à filosofia que a queiram para fazer física; na sua maior parte, querem que a filosofia forneça uma espécie de substituto secular para a religião. Por outras palavras, querem que os seus filósofos sejam gurus. E a última coisa que os discípulos querem dos gurus é que tenham sentido de humor; o sentido de humor é contrário ao ar de autoridade que faz os gurus atrair discípulos. Assim, quando os gurus filosóficos levantam poeira ao dizerem coisas sem sentido que parecem importantes, os seus discípulos, longe de se queixarem de que não podem ver, ficam ainda mais impressionados pela obscuridade profunda da visão oferecida. Em filosofia, portanto, tal como na religião e na medicina, um público crédulo dará muitas vezes fama e fortuna aos adoradores de mistérios.

Que tem tudo isto a ver com a filosofia analítica? Bem, para usar a metáfora de Berkeley, a análise filosófica é, como até o meu exemplo trivial ilustra, uma espécie de sistema de rega aérea, cuja função é lavar o pó conceptual que obscurece a nossa perspectiva do mundo. Este é na verdade um dos seus objectivos principais: detectar e dissipar os mistérios quiméricos que o sem sentido gera, como o pequeno mistério de Lewis Carroll sobre Ninguém, para que os verdadeiros mistérios do mundo possam ser mais claramente vistos e desse modo — espera-se — mais bem apreciados e compreendidos.

Neste sentido, a boa filosofia sempre foi analítica. A análise é mais uma questão de técnica do que doutrina, e é tão óbvia em Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Leibniz, Kant e Mill como em qualquer filósofo analítico moderno. Se há algo que distingue a chamada filosofia analítica, é que não se limita a usar técnicas analíticas, preocupando-se também explicitamente em desenvolvê-las e avaliá-las: não, é claro, como fins em si, mas como meios para a compreensão filosófica. Mas não, é claro, como o único meio, dado que um analista precisa sempre de material não analítico para analisar. A análise não pode fornecer uma filosofia completa por si, tal como — por exemplo — a democracia não pode fornecer uma política completa: porque, como é óbvio, aceitar o princípio do governo da maioria não nos diz em quem ou no que votar, ou porquê. Nenhum democrata político, por outras palavras, pode ser apenas um democrata; e do mesmo modo, nenhum analista filosófico pode ser apenas um analista. Isto não é negar, é claro, a importância da análise, nem a importância da democracia; nem negar que pode entrar em conflito com o sem sentido filosófico (como o ser de Ninguém), tal como a democracia pode entrar em conflito com o sem sentido político (como o estado de partido único).

Mas ao passo que toda a gente pode sentir que a democracia é importante, e pode mais ou menos ver porquê, é menos óbvio para não filósofos por que razão a análise filosófica é importante. Se a filosofia em geral não é um desporto que atrai mais espectadores do que praticantes, o que pode a filosofia analítica em particular oferecer ao resto da sociedade? Bem, eu poderia dizer, para começar, que oferece, porque exige e encoraja, um temperamento socialmente desejável. Ter sensibilidade ao destituído de sentido não é um ponto forte só na filosofia. O sentido de humor, e portanto das proporções, é um antídoto poderoso ao fanatismo político e religioso. Uma insistência na compreensão discursiva explicita onde esta pode ser alcançada, por contraste com intimações obscuras à argúcia inefável, é um grande dissuasor de todos os tipos de charlatanismo. Um comprometimento com a verdade, e portanto com a fundamentação das nossas crenças em indícios e não no sonhar alto (por mais elevados que sejam os sentimentos), é essencial não apenas para a boa ciência, mas para todas as tentativas sérias de adquirir conhecimento e compreensão sobre seja o que for, incluindo nós mesmos. E a sensibilidade à razão que a análise gratifica ajuda a combater uma tendência recorrente para elevar a sensibilidade às custas da razão, como se estas fossem opostas, e como se não precisássemos de ambas.

A sociedade, contudo, não está apenas em dívida para com o temperamento que a filosofia analítica promove. Também os resultados da análise tiveram muitos usos fora da própria filosofia, apesar de eu não desejar exagerá-los nem aceitar que fornecem a sua justificação principal: a filosofia, como a matemática, tem um valor próprio, independente das suas aplicações. Mesmo assim, essas aplicações são realmente extraordinárias: da invenção dos computadores (com base em análises dos conceitos de demonstração e verdade matemática) aos debates sobre o aborto, que dependem dos conceitos de vida e de humanidade, cuja análise é demasiado importante para ser deixada a pessoas que têm objectivos religiosos particulares (ou anti-religiosos).

Mas além de tudo isto penso que a filosofia analítica serve a sociedade mais evidentemente quando aumenta a nossa compreensão clarificando conceitos que dizem respeito a toda a gente, sejam ou não filósofos.


Tradução de Desidério Murcho
Texto retirado da obra Matters of Metaphysics (Cambridge University Press, 1991), pp. 1-4.

domingo, 10 de agosto de 2008

Irresponsabilidade e Desfaçatez

Em 1979 o filósofo alemão de origem judaica, Hans Jonas, escreveu sua obra magna: O Princípio Responsabilidade: Ensaio para uma Ética da Civilização Tecnológica - felizmente com tradução em português. Segundo Hans Jonas as éticas tradicionais não vão além do imediato, das relações de proximidade, enquanto a civilização tecnológica, a qual constituímos, alcança toda a biosfera, todas as relações vitais no planeta. Jonas já alertava (ele faleceu em 1993 aos 90 anos) quanto ao perigo constante de as ações humanas tornarem-se destrutivas em escala planetária. Em escala micro-planetária, isso é, em escala humana já observamos os resultados. Por exemplo, desde 2006 várias cirurgias vêm apresentando contaminação por micro-bactérias resistentes às assepsias convencionais. Somente nesse ano (2008) as associações de cirurgiões começaram a tomar providências - pressionados, principalmente, pela ANVISA. Em entrevista em um programa de alcance nacional várias associações médicas afirmaram estar tomando providências. Desde quando áreas vitais podem dar-se ao luxo de não ampliarem constamente as condições de higiene quanto aos utensílios de suas práticas? A desfaçatez de plantão provavelmente evocará as novas bactérias e vírus a desafiarem novas técnicas de assepsia. Mas não é o caso. As micro-bactérias que tem contaminado várias pessoas já são conhecidas. As condições de assepsia e que vêm se deteriorando, enquanto o lucro típico de nossa sociedade cínica aumenta geometricamente.
Parece-me que Hans Jonas tinha razão. A sociedade tecnológica com seus códigos de ética-profissionais não alcança a sensatez necessária para a manutenção da saúde em um sentido mais amplo. Irresponsabilidade e desfaçatez assombram a face do planeta em todas as áreas e profissões. Até quando? Parafraseando uma questão moderna: seremos responsáveis o suficiente?
Fica a sugestão: leiam O Princípio Responsabilidade e vivam responsavelmente pelo bem do planeta, em geral, e da vida humana, em particular.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

O que é um filósofo?

O amigo e professor Desiderio Murcho (Universidade Federal de Ouro Preto - MG) escreveu uma interessantíssima reflexão sobre o ser filósofo. Assim como um outro colega, professor José Gonçalo Armijos Palácios (Universidade Federal de Goiás), o prof. Desiderio pensa ser o filosofar muito mais modesto e afim do cotidiano do que o estereótipo do qual a filosofia tem sido revestida ao longo dos tempos.


O que é um filósofo?
Desidério Murcho

Este fim-de-semana fui colocado perante um infelizmente bem conhecido dilema pela directora da revista "Os Meus Livros", de que sou colaborador: "O que ponho junto à tua fotografia? Ensaísta? Escritor?" Pois. Um licenciado em matemática é um matemático, ainda que nunca tenha descoberto um único teorema original; alguém escreve 100 páginas chorosas sobre dores de alma infantis e é um romancista ou um poeta; uma pessoa pespega meia dúzia de tintas numas telas ralas e é um pintor; mas alguém com formação em filosofia, autor de artigos e livros de filosofia... nunca é um filósofo. Penso que a confusão conceptual que provoca este estado de coisas é significativo e é disso que quero falar-lhe.

Se me apresentar como filósofo ao homem da rua, ele pensará que sou um diletante, um pretensioso francamente ridículo. Mas o mesmo homem da rua admite que eu possa ser um poeta, um romancista, um matemático ou um pintor. Estamos perante dois critérios bem distintos. No que respeita ao romancista, ao matemático, ao pintor, o homem da rua sabe distinguir os muito importantes, com trabalho de valor original que se perpetua pelos séculos, da imensidão de outros, que todavia ainda merecem o títulozinho. Mas no que respeita aos filósofos, tal distinção não parece existir; para o homem da rua ou se é Platão, ou não se é filósofo, apesar de nem todos os matemáticos serem Fermat nem todos os pintores Picasso.

Penso que a razão de ser desta disparidade é o atraso cultural. O homem da rua está habituado à presença de matemáticos, pintores e poetas modestos; mas desconhece a existência de precisamente o mesmo tipo de pessoas modestas que fazem filosofia e portanto são filósofos, apesar de estarem longe de serem filósofos originais de perfil universal como Aristóteles. Este é mais um reflexo infeliz de um sistema educativo atrasado que impede o contacto das pessoas com a filosofia tal como ela é realmente feita por esse mundo fora. A filosofia surge como uma coisa estranha, distante, do passado, envolta em mistério e brumas — e portanto definir-me como filósofo só poderia ser um gesto de vão pretensiosismo. É esta mesma estrutura mental que não permite distinguir a filosofia da história da filosofia — pois a filosofia é algo de tão transcendente e estranho que só semi-deuses míticos e distantes a podem realmente fazer, restando-nos as soporíferas histórias da filosofia aos quadradinhos que nos vendem na escola.

O que há de grave neste estado de coisas, é que a filosofia tem um papel cada vez mais activo no desenvolvimento das ciências e na compreensão da vida pública. Não é possível compreender cabalmente a economia e as suas opções, nem as matemáticas ou as neurociências, sem uma formação mínima em filosofia — nem é possível compreender os fundamentos das religiões ou da arte, nem é possível encontrar respostas criativas e satisfatórias para os problemas da bioética, sem uma boa formação em filosofia. Assim, estranhar que possa haver filósofos que não se vestem de toga e não morreram há mais de um século num país distante, é um sinal seguro de que o caminho a percorrer para o desenvolvimento cultural do país é ainda longo.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Um sítio eletrônico sobre filosofia na vida cotidiana

Eis um sítio eletrônico excelente sobre como a filosofia pode ser utilizada na vida cotidiana. Para quem consegue ler em inglês. Infelizmente não está traduzido para o português. Mas mesmo assim, um leitor intermediário, com algum esforço, pode perceber o quanto a filosofia está entranhada em nossas vidas. Criado pelo filósofo norte-americano Alexandre George o qual publicou as melhores questões e respostas recentemente (livro: What would Socrates say? Clarkson Potter Publishers) com tradução prevista para o português. Para acessar clique no título do post.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Filosofia em alta

A Revista IstoÉ Independente de 11/06/2008 traz uma matéria sobre o crescente interesse pela Filosofia. Resta saber se esse interesse não é uma confusa mistura de Filosofia com auto-ajuda ou outra coisa qualquer. Para ler clique no título do post.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

O "tesão" da enganação...

O tradutor português, Vitor Guerreiro, propôs uma interessantíssima reflexão sobre a manipulação das crenças alheias a partir do conceito "mindfuck" - o qual é apresentado no livro Mindfucking (Collin McGinn - filósofo inglês). Clique no título do post para ler.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Dicas da Dad Squarisi

O meio jurídico exagera o uso de expressões que mais confundem do que esclarecem. Falar ou escrever claro é fundamental para uma melhor compreensão. E compreender não é uma das tarefas mais fáceis em nossas vidas, daí porque é importante ser o mais claro possível.


Combate ao juridiquês

por Dad Squarisi


Desembargador paranaense sugere regras para combater o juridiquês

Tido em alguns círculos do Direito do Paraná como um dos mensageiros da modernidade no Judiciário, o desembargador Francisco Rabello, do TJ daquele estado, mantém em seu gabinete uma lista, atualizada constantemente, de expressões de "juridiquês", que ficam prescritas em seus despachos, decisões e votos. Tudo em nome da aproximação.


"Ninguém sabe o que querem dizer determinadas estranhas palavras; o Judiciário precisa simplificar sua linguagem, para ser entendido", diz Rabello.


Entre as regras a obedecer, as peças produzidas no gabinete devem, quando for o caso, sempre se referir à "petição inicial" - e jamais à "peça vestibular", "peça de ingresso", "exordial", "proemial", "inaugural", "prefacial" ou outro qualquer rebatismo que se possa imaginar.


"Ação contra o réu" é outro pecado que comete quem, erroneamente, supõe que o direito de ação tem como titular passivo o adversário, o outro sujeito da relação jurídica litigiosa, quando o Estado é que é esse titular. "Por isso é lícito dizer que a demanda é proposta com relação a alguém, ou, então que foi proposta a ação em face de beltrano" - refere exemplificativamente o magistrado.


Numa relação intitulada "Palavras que não devem ser usadas em escritos judiciais" - e afixada no gabinete - existem atualmente 38 termos (veja relação adiante). Essa lista será ampliada sempre que o magistrado, ou seus assessores, se depararem em petições e documentos com termos obtusos ou ininteligíveis. Assim, é conveniente que não só advogados paranaense - mas, por extensão, de todo o Brasil, evitem as seguintes expressões:

* Alcaide

* A nível (de)

* Ao (ou no) apagar das luzes

* Ao meu ver

* Através de

* Causídico

* Citado editaliciamente

* Claro como o sol do meio-dia

* De vez que

* Edil

* Edilidade

* Eis que

* Elemento (pessoa)

* Elo de ligação
* Embasar, embasamento

* Encarar de frente
* Enfrentar de frente

* Ente querido

* Entrar dentro
* Entrementes

* Erário público
* Fazem x anos (fazer = tempo > impessoal)

* Há x anos atrás
* Inobstante
* Lugar incerto e não sabido

* Manter o mesmo
* Manter o seu

* Meliante
* Monopólio exclusivo

* O processo (a ação) deu entrada junto ao
* Juízo tal

* Prefeitura municipal
* Sendo que

* Tangentemente
* Todos são unânimes

* Todos foram unânimes
* Varoa

* Virago


(colaboração encaminhada por Roldão Simas Filho)

Data: 09.06.2008

sábado, 7 de junho de 2008

Por que não valorizamos a Filosofia?

O prof. Paulo Ghiraldelli Jr. (pronuncia-se "Guiraldelli") escreveu uma interessante reflexão sobre o esforço que os norte-americanos têm feito em relação a valorização do pensamento filosófico. Vale a pena ler. Clique no título do post para acessar o blog do prof. Ghiraldelli.

domingo, 1 de junho de 2008

O direito de caricaturar de Ronald Dworkin

Nesse texto o filósofo norte-americano, Ronald Dworkin, cuja área de estudos é o Direito, analisa a possibilidade de o humor não ser tido como passível de repressão violenta como tem acontecido quando o alvo do humor são as crenças religiosas, em especial, e cita o caso das caricaturas no jornal dinamarquês, que alguns muçulmanos imputaram ser do profeta Mohammed. É interessante observar que em regimes autoritários e totalitários o principal inimigo é a possibilidade de o humor servir de contraponto crítico. Daí porque qualquer atitude autoritária ou totalitária encare o humor como algo a ser duramente combatido. Alguns poderão objetar que há uma diferença entre humor, sarcasmo, escárnio e ridicularizar, mas a questão é: o quanto o uso do humor como forma legítima de livre expressão deva ser limitado devido àqueles que admitem crenças (quaisquer que sejam) considerarem o humor "abusivo"? Na Grécia Antiga o método irônico causou a condenação de Sócrates. O limite entre o ofensivo e o expressivo é uma construção delicada nas relações entre os que pensam e agem diferentemente.


19 de Março de 2006 · Opinião

O direito de ridicularizar

Ronald Dworkin
Universidade de Nova Iorque

A imprensa britânica e americana fizeram bem, no cômputo geral, em não reproduzir as caricaturas dinamarquesas que foram objecto do protesto de milhões de muçulmanos furiosos, recorrendo à destruição violenta e terrível um pouco por todo o mundo. Reproduzir as caricaturas teria muito provavelmente como resultado — e pode ainda ter esse resultado — que mais pessoas seriam mortas e mais propriedade seria destruída. Teria causado muito sofrimento a muitos muçulmanos britânicos e americanos porque os outros muçulmanos lhes teriam dito que a publicação das caricaturas tinha por objectivo mostrar desprezo pela sua religião, e ainda que tal impressão tivesse sido, na maior parte dos casos, incorrecta e injustificada, o sofrimento seria, contudo, genuíno. É verdade que os leitores e telespectadores que têm seguido esta história podem muito bem ter desejado ajuizar por si o impacto, humor e grau de ofensa das caricaturas, pelo que a imprensa pode ter sentido que tinha o dever de lhes dar essa oportunidade. Mas o público não tem o direito de ler ou ver o que quer independentemente do preço a pagar, e as caricaturas, em qualquer caso, estão facilmente disponíveis na Internet.

Por vezes, a autocensura da imprensa significa uma perda de informação, argumento, literatura ou arte de valor, mas isso não aconteceu neste caso. Não publicar as caricaturas pode dar uma vitória aos fanáticos e às autoridades que instigaram os protestos violentos e, portanto, pode incitá-los a adoptar tácticas semelhantes no futuro. Mas há fortes provas de que a onda de tumultos e destruição — subitamente, quatro meses depois de as caricaturas terem sido publicadas — foi orquestrada por líderes muçulmanos da Dinamarca e do médio oriente que têm razões políticas mais abrangentes. Se esta análise estiver correcta, manter o tema na ordem do dia, voltando a reproduzir as caricaturas, estaria de facto a servir os interesses dos responsáveis pela violência e a recompensar as suas estratégias de encorajar a violência.

Há um perigo real, contudo, de que a decisão da imprensa britânica e americana de não reproduzir as caricaturas, apesar de sábia, será erradamente tomada como uma aceitação da opinião largamente partilhada de que a liberdade de expressão tem limites, que tem de se conter face às virtudes do "multiculturalismo", e que o governo de Blair tinha afinal razão ao propor que seja um crime publicar algo que seja visto como "abusivo ou insultuoso" por qualquer grupo religioso.

A liberdade de expressão não é apenas um emblema especial da cultura ocidental, que a distingue das outras, e que se pode generosamente limitar ou qualificar como medida de respeito por outras culturas que a rejeitam, do mesmo modo que se pode adicionar um crescente islâmico ou uma estrela judaica a um estandarte religioso cristão. A liberdade de expressão é uma condição do governo legítimo. As leis e as políticas não são legítimas a menos que tenham sido adoptadas através de um processo democrático, e um processo não é democrático se o governo impediu qualquer pessoa de expressar as suas convicções sobre o que tais leis e políticas devem ser.

Ridicularizar é uma forma característica de expressão; a sua substância não pode ser traduzida numa forma retórica menos ofensiva sem expressar algo muito diferente do que se pretendia. É por isso que as caricaturas e outras formas de ridicularizar têm estado, ao longo dos séculos, mesmo quando era ilegal, entre as mais importantes armas tanto de movimentos políticos nobres como corruptos.

Assim, numa democracia, seja poderoso ou impotente, ninguém pode ter o direito de não ser insultado ou ofendido. Este princípio é de particular importância numa nação que procura arduamente a justiça racial e étnica. Se as minorias fracas ou impopulares querem ser protegidas por lei contra a discriminação económica ou legal — se querem leis que proíbam que sejam discriminados no que respeita ao emprego, por exemplo — têm de estar dispostos a tolerar sejam quais forem os insultos ou as ridicularizações que as pessoas que se opõem a tal legislação oferecem aos eleitores, porque só uma comunidade que permite tal insulto como parte do debate público pode ter a legitimidade para adoptar tais leis. Se queremos que os fanáticos aceitem o veredicto da maioria depois de esta o declarar, então temos de permitir que exprimam o seu fanatismo no processo cujo veredicto lhes pedimos que aceitem. Seja o que for que o multiculturalismo signifique — seja o que for que signifique um maior "respeito" por todos os cidadãos e grupos — estas virtudes anular-se-iam a si mesmas se as concebêssemos de modo a justificar a censura oficial.

Os muçulmanos que ficaram indignados com as caricaturas dinamarquesas sublinham que em muitos países europeus é um crime negar publicamente, como fez o presidente do Irão, a existência do Holocausto. Dizem que a preocupação do ocidente com a liberdade de expressão é apenas uma hipocrisia interesseira, e têm razão. Mas é claro que o remédio não é comprometer ainda mais a legitimidade democrática, mas encontrar uma nova compreensão da Convenção Europeia sobre os Direitos Humanos que veja a lei contra a negação do Holocausto, e outras semelhantes, em toda a Europa, como o que realmente são: violações da liberdade de expressão que essa convenção exige.

Diz-se muitas vezes que a religião é especial porque as convicções religiosas das pessoas são tão centrais para as suas personalidades que não se deve pedir-lhes que tolerem quem ridiculariza as suas crenças, e porque podem sentir que têm o dever religioso de contra-atacar perante o que tomam como sacrílego. O Reino Unido aceitou aparentemente essa perspectiva, pois continua a considerar a blasfémia como um crime, ainda que apenas no caso de insultos ao cristianismo. Mas não podemos abrir uma excepção para o insulto religioso se quisermos usar a lei para proteger outros aspectos do livre exercício da religião. Se queremos proibir a polícia de, ao fazer buscas especiais, se concentrar nas pessoas que parecem muçulmanas ou se vestem como tal, por exemplo, não podemos ao mesmo tempo proibir as pessoas de se opor a essa política invocando, em caricaturas ou por outros meios, que o islamismo é sinónimo de terrorismo, por mais disparatada consideremos tal opinião. Devemos certamente criticar o juízo e o bom-gosto de tais pessoas. Mas é a religião que tem de observar os princípios da democracia — e não o contrário. Não se pode permitir que religião alguma faça leis para todas as pessoas sobre o que se pode ou não desenhar, tal como não se pode permitir que possa fazer leis para toda a gente sobre o que se pode ou não comer. Nenhumas convicções religiosas podem sobrepor-se à liberdade que torna a democracia possível.

Ronald Dworkin

Tradução de Desidério Murcho
Publicado em The New York Review of Books (23 de Março de 2006)

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Por que as mulheres são tão chatas no amor?

A escritora Lia Luft escreveu há algum tempo um interessante e provocador ensaio sobre o ser mulher no mundo contemporâneo. Já enviei esse texto para várias amigas e conhecidas e agora o disponibilizo aqui, no blog Esfera Pública Acadêmica, a pedidos.


Por que as mulheres são tão chatas no amor?

Por Lia Luft.

No começo diziam que eu escrevia mais para mulheres (o que é bobagem) e que minhas personagens femininas são mais fortes do que os homens (idem). Rótulos são imprecisos e empobrecedores, mas o que se há de fazer.
Depois de Rio do Meio, de 1976, passaram a dizer que eu defendia demais os homens. Na verdade nunca defendi nem me pediram que fizesse isso. Eu apenas devo ter do masculino uma visão mais positiva do que, parece, boa parte das mulheres. Tive um pai amigo, que desde criança me ensinou a cuidar da minha dignidade, e dois companheiros que me respeitaram como ser humano, empurrando-me para a frente e para cima.
No Rio, escrevi entre outras coisas que também os homens sofrem de solidão - na medida da solidão (ou da infantilidade) de suas mulheres; que também querem ser amados, ouvidos, olhados, não só criticados e cobrados.
Em palestras afirmo (para horror de muitas) que nós, mulheres, também sabemos ser muito chatas. Insatisfeitas, cobradoras, ásperas ou lamuriosas, frívolas e agitadas: nem sempre companheiras, poucas vezes cúmplices.
Está certo que andamos sobrecarregadas nesses tempos modernos, vacilando entre competência e beleza (ah, os modelos absurdos e impossíveis que permitimos que nos implantem nas belas cabeças…), correndo entre filhos e patrão, cartão de crédito ou momentinho de ócio escutando aquela música ou vendo aquele vídeo no sofá da sala em plena tarde. Sem que ninguém nos chame com aquela voz grossa e fatigada: Ô, mãããe. Sem o fantasma de mãe, tias ou avós, de mão na cintura, na soleira da porta da nossa culpa ancestral nos criticando: “Mas como! A essa hora aí atirada sem fazer nada?”
Repito que sabemos ser chatas, implicantes, desassossegadas, indiscretas e críticas. E deixamos sozinho o nosso homem, que bem ou mal é o que está do nosso lado. Pois, se for ruim demais, por que ainda estamos com ele? Filho pequeno não é desculpa para alguma grave omissão quanto à vida pessoal ou carreira: mãe sombria ou patética não ajuda filho nenhum a crescer com esperança e otimismo, necessários para não se tornar um revoltado ou apático monstrinho.
Um amigo meu, tendo sido muito rico, estava falido, e sua dor maior era ter de participar à mulher que ela não podia mais assinar um chequezinho: todos sem fundos.
Depois desse desabafo dele, pensei no que teria sido sua vida a dois, ela tratada como mais uma criança em casa, ignorando a trajetória, possivelmente as vitórias e derrotas, medos e solidão do seu marido.
Não são só as mulheres que precisam falar e ser ouvidas: na sua linguagem e no seu ritmo, que não são os nossos, se pudessem abrir o coração (o que raramente fazem) muitos homens se queixariam de que ninguém os escuta em casa. A mulher grudada nos filhos ou na televisão, no telefone com a amiga; os filhos na rua, ou fechados no quarto; e com os amigos do bar ou do escritório, os homens falam de futebol, mulher, carro, raramente de si mesmos e de sua humanidade.
Assim inventei há pouco tempo o que seria um lamento dos homens desejando que a mulher, amante ou namorada os acolhesse melhor: Que quando chego do trabalho ela largue por um instante o que estiver fazendo - filho, panela ou computador - e venha me dar um beijo como os de antigamente. Que, mesmo com o passar do tempo, os trabalhos, os sofrimentos e o peso do cotidiano, ela não perca o jeito que me encantou quando a vi pela primeira vez. Que se estou cansado demais para fazer amor ela não ironize nem diga que “até que durou muito” o meu desejo ou potência. Que quando quero fazer amor ela não se recuse demasiadas vezes nem fique impaciente ou rígida, mas cálida como foi anos atrás. Que ela não me humilhe porque estou ficando calvo ou barrigudo nem comente nossa intimidade com as amigas, como tantas mulheres fazem. Que jamais se permita comentar diante de outros, nem de brincadeira, seja positiva ou negativa, o meu desempenho sexual.
Que não tire nosso bebê dos meus braços dizendo que homem não tem jeito pra isso ou que não sei segurar a cabecinha dele, mas me ensine o que eu não souber. Que ela nunca se interponha entre mim e as crianças, mas sirva de ponte entre nós quando me distancio ou distraio demais. Que quando preciso ficar um pouco quieto ela não insista o tempo todo para que eu fale ou a escute, como se silêncio fosse sinal de falta de amor. Que quando estou com pouco dinheiro ela não me acuse de ter desperdiçado com bobagens em lugar de prover para minha família. Que quando estou trabalhando ela não telefone a toda hora para cobrar alguma coisa que esqueci de fazer ou não tive tempo. Que não se insinue com minha secretária ou colega para descobrir se tenho uma amante.
Que com ela eu também possa ter momentos de fraqueza, de ternura, me desarmar, me desnudar de alma, sem medo de ser criticado ou censurado: que ela seja minha parceira, não minha dependente nem meu juiz. Que cuide um pouco de mim como minha parceira, mas não como se eu fosse um filho desastrado e ela a mãe onipotente; que não me transforme em filho.
E que, se erro, falho, esqueço, me distancio, me fecho demais ou a machuco consciente ou inconscientemente, ela saiba me chamar de volta com aquela ternura que só nela eu descobri e desejei que não se perdesse nunca, mas me contagiasse e me tornasse mais feliz, menos solitário e muito mais humano.
Essa brincadeira séria me valeu protestos de algumas mulheres, aplausos de outras e abraços de muitos de meus amigos homens. Alguém (um homem) me escreveu dizendo que suspeitava de que o texto tivesse sido escrito pelo meu “maridão”. Respondi ao e-mail com outro informando que só se fosse em sessão espírita, pois há muitos anos eu já enviuvara pela segunda vez. E se eu dissesse que o pai de meus filhos, ilustre gramático e lingüista, jamais escrevera uma linha de meus tantos livros, essa pessoa não acreditaria também.
De modo que, sim, eu acho que não somos santas nem temos obrigação de ser, mas bem que aqui e ali valeria a pena parar, olhar, escutar; dentro de si, e ao lado, onde está aquele com quem afinal partilhamos a vida.
Temos escutado o que ele diz ou o que nos diz seu silêncio? Temos ainda lembrado de agradar, elogiar, sorrir, fazer carinho ou estamos demais ocupadas botando Botox na cara e passando horas na academia com medo de que o tempo nos devore o que sobrou da nossa alma?
Ainda pensamos nele, nas suas necessidades, emoções, desejo, frustrações, medo e fraquezas, como quando éramos namorados - ou estamos demais distraídas com as amigas, o bingo, o carteado, a butique, o mais recente mexerico sobre artistas de televisão ou sobre a vizinha? Não sei. Receio que responder seja tão duro quanto perguntar.
Não acho que a gente deva ser boazinha, gueixa submissa ou serviçal ressentida, menininha de voz fina gingando em saltos altíssimos pela casa ou arrastando-se às 4 da tarde de robe e pantufas com cara de cachorro (vi numa vitrine umas com orelhas!).
Importante seria não deixar que a poeira da banalidade abafasse o que havia entre a gente de encantamento e magia, ainda que o namorado agora seja um marido mais barrigudo, e menos cabeludo, de óculos, que chega em casa cansado demais pra reparar no quanto estamos bonitas ou exaustas demais.
O bom seria que continuássemos amantes, sendo também amigos. Pois amor é amizade com sensualidade: se não gosto do outro com seus defeitos e qualidades, manias e até pequenas loucuras, como foi que o escolhi para viver comigo numa casa, na mesma mesa, cama e talvez todo o tempo de minha existência?
Acho que, sim, somos demasiadas vezes chatas, cobradoras, secas, lamurientas, infantis e de um egoísmo retumbante. Embora gostemos de nos apresentar como incompreendidas ou maltratadas, merecedoras de todas as compensações imagináveis, é bom ponderar que a mulher-vítima e a mãe-mártir inspiram culpa e aflição e perturbam toda uma família.
Melhor ser natural. Melhor ser generosa com limites, sem se deixar explorar; melhor ser bem-humorada, porque alegria é muitas vezes a última esperança de um velho amor. Melhor ainda, melhor mesmo, é abraçar, fazer aquele carinho, olhar fundo no olho, e dizer alguma palavra antiga, esquecida nas correrias cotidianas. O coração se renova com a mesma fagulha que, há dois anos ou 20 ou até mais, fazia cada encontro uma emoção, e a gente sentia que ali, sim, estava o que mais queríamos na vida. Resta saber o que fizemos com aquela relação e como temos afinal lidado com esse homem que foi o objeto máximo de nosso desejo e sonho.