domingo, 9 de agosto de 2009

Bauman II

Eis um outro texto de Bauman sobre a instabilidade nas e das sociedades contemporâneas. Bauman analisa os diferentes aspectos sociopolíticos e econômicos que nos desafia e nos desafiará ao longo do século XXI. Boa leitura.

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Cult - 138

03/08/2009

O triplo desafio 
   
Por: Zygmunt Bauman
   
Semelhante à idéia da Santíssima Trindade presente nas sagradas Escrituras, há um triplo desafio que a humanidade enfrenta atualmente e, dependendo de suas respostas, podem levar a moldar o futuro do planeta. Triplo desafio ou ainda três num único ( «três em um ", ou "os três como um só"). O desafio atual é composto por três partes: o interregno, a incerteza, e a disparidade institucional, mas cada parte remete às outras duas, que são inseparáveis.
   
   
Interregno

Algures no final dos anos 20 e 30, no início do século passado, Antonio Gramsci escreveu em uma das muitas anotações por ele feitas durante o seu longo encarceramento na prisão de Turi: "A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem."
   
O termo "interregno" foi originalmente usado para designar um hiato de tempo que separa o falecimento de um monarca soberano até a entronização do seu sucessor: estes períodos eram utilizados como as principais ocasiões em que as gerações passadas experimentavam (e costumeiramente esperavam) uma ruptura naquela monótona forma de continuidade do governo, da lei e da ordem social.
   
O direito romano colocou um carimbo oficial sobre essa compreensão do termo (e seu significado), quando proclama o interregno justitium, que é (como Giorgio Agamben nos lembrou em seu estudo de 2003, Lo Stato di eccezione) reconhecidamente uma suspensão temporária das leis e todas as normas existentes (presumivelmente na expectativa de leis novas e diferentes serem eventualmente proclamadas).
   
Gramsci amplia, no entanto, o conceito de "interregno" com um novo significado, abrangendo o mais amplo espectro de aspectos sócio-político-jurídicos da ordem e, simultaneamente, atingindo mais profundamente a condição sócio-cultural. Ou melhor (lembrando a memorável definição de Lenin de "situação revolucionária", como uma condição em que os governantes já não tem mais poder, enquanto o Estado não mais deseja ser governado por eles), Gramsci liberta a idéia de "interregno" de sua habitual associação com intervalo de (uma rotina) de transmissão hereditária ou poder elegível, e anexa a situações extraordinárias em que o quadro jurídico existente de uma ordem social perde a sua aderência e já não pode se impor, enquanto que um novo quadro, feito à medida das forças recém-emergidas que gera as condições responsáveis por tornar o antigo quadro inútil, ainda está na fase concepção, ainda não foi completamente montado ou não é suficientemente forte para ser colocado em seu lugar.
   
Eu proponho, seguindo a sugestão recente de Keith Tester [Professor de Sociologia da Cultura da Universidade de Portsmouth, na Inglaterra] reconhecer a atual condição planetária como um caso de interregno. Com efeito, tal como o postulado de Gramsci, "o velho está morrendo". A velha ordem fundada até recentemente, em uma forma semelhante "triuno" - princípio do território, estado e nação, como chave para a distribuição planetária da soberania e do poder; este aparentemente sempre devotado à política territorial do Estado-nação como a sua única agência operacional, está, por agora morrer. 
   
A soberania não é mais colada a qualquer dos elementos do princípio "triuno" e suas entidades derivadas; na dimensão macro é vinculada a elas, mas vagamente e em porções muito reduzidas em tamanho e conteúdo. O casamento supostamente inquebrável de poder e política está, por outro lado, terminando em separação com uma perspectiva de divórcio.
   
Soberania é hoje, por assim dizer, desancorada e livre-flutuante. Os critérios da sua atribuição tendem a ser calorosamente contestados, enquanto a seqüência usual do princípio da repartição e sua aplicação está, em um grande número de casos, invertida (isto é, este princípio tende a ser retrospectivamente articulado na sequência da decisão atribuída, ou inferido da decisão já realizada, a partir do estado de coisas).
   
Estados-nação partilham trajetos conflituosos realmente irascíveis, ou fingem aspirá-los, mas sempre com uma disciplina extremamente competitiva, com as instituições escapando com êxito da aplicação do antigamente obrigatório princípio triuno da repartição, e, muitas vezes, ignorando explicitamente ou sub-repticiamente solapando, prejudicando seus objetivos designados.
   
Certamente o aumento do número de concorrentes pela soberania, mesmo que não isoladamente mas certamente de forma solidária, equivale a potência média de um Estado-nação (multinacionais financeiras, industriais e empresas comerciais contam agora, de acordo com John Gray [Professor da London School of Economy, colaborador do jornal The Guardian], com "cerca de um terço da produção mundial e dois terços do comércio mundial").
   
Soberania, esse direito de decidir as leis, bem como excepções à sua aplicação, bem como o poder de tornar as duas decisões vinculativas e eficazes, é para um determinado território e num determinado aspecto da vida, fixada dispersamente em uma multiplicidade de centros - e por essa razão é eminentemente questionável e contestável, enquanto nenhuma decisão tomada por alguma agência consegue ter fundamento plenamente soberano (isto é, sem constrangimento, indivisível, não compartilhado), para não falar da alegação de credibilidade e eficácia. 
   
   
Incerteza
   
Risco, diz Ulrich Beck [Sociólogo alemão, professor da Londo School of Economics e da Universidade de Munique], o pioneiro da discussão contemporânea e ainda um dos seus principais e mais proficientes teóricos, a partir do início da modernidade "amalgama-se com o conhecimento do não-saber dentro do horizonte semântico de probabilidade".
   
"A história da ciência data do nascimento do cálculo da probabilidade, a primeira tentativa de trazer o imprevisível sob controle - desenvolvido na correspondência entre Pierre Fermat e Blaise Pascal - para o ano 1651". Desde então, através da categoria de risco ", o pressuposto arrogante de controlabilidade", Beck acrescenta, "pode aumentar a influência".
   
Com o benefício deste retrospecto, a partir da perspectiva da reconhecidamente sequela liquidificada para a liquidificação compulsiva da ainda obsessão sólida da precoce modernidade, podemos dizer que a categoria de risco foi uma tentativa de conciliar os dois pilares da consciência moderna - a consciência da contingência e aleatoriedade do mundo, por um lado, e do 'nós podemos', um tipo de confiança, de outro lado.
   
Mais exatamente, a categoria de "risco" foi uma tentativa de salvar o segundo, apesar das intrusões, ressentimentos e temores com o primeiro. A categoria de "risco" prometeu que, mesmo que o cenário natural, bem como o homem - completem o cenário no qual são obrigados a parar repentinamente a partir da regularidade e de forma incondicional longe do ideal de plena previsibilidade, os seres humanos podem ainda chegar muito perto da condição de certeza através do recolhimento e armazenagem da flexibilização de seus conhecimentos e práticas, o braço tecnológico.
   
A categoria de "risco" não é uma infalível promessa de segurança a partir de perigos: ela prometeu a capacidade de calcular a sua probabilidade e provável volume - e assim, obliquamente, a possibilidade de calcular e aplicar a melhor distribuição dos recursos destina-se a tornar as empresas mais eficazes e bem sucedidas.
   
Mesmo que não explicitamente, a semântica do «risco» necessário para assumir, de forma evidente, uma 'estrutura' ( 'estruturação': manipulação e a consequente diferenciação de probabilidades), essencialmente uma regra de observação do ambiente: um universo em que as probabilidades de eventos são determinados, podem ser roteirizados, fazerem-se conhecidos e apreciados.
   
Mas, por medida poderá o cálculo do risco "parar a partir de uma perfeita e infalível certeza, e, portanto, a partir das perspectivas de pré-determinar o futuro, a sua distância pode parecer pequena e insignificante em comparação com a intransponível e categórico abismo que separa a "semântica de horizonte de probabilidade" (e assim também o risco para Espera-cálculo) da premonição da saturação da incerteza e assombração moderna contemporânea da consciência líquida.
   
Como salientou John Gray, já uma dúzia de anos atrás, "os governos dos estados soberanos não sabe de antemão como os mercados vão reagir ... Os governos nacionais, na década de 1990 estão voando às cegas". Gray não espera o futuro anunciar condições marcantemente diferentes; como no passado, podemos esperar "uma sucessão de contingências e catástrofes ocasionais na paz e civilização" - todos elas, deixem-me acrescentar, inesperadas, imprevisíveis e, mais frequentemente, pegando as suas vítimas, bem como os seus beneficiários desprevenidos e despreparados ...
   
Parece cada vez mais provável o anúncio da descoberta e da centralidade do "horizonte de risco", mentalidade moderna que se segue ao eterno hábito da Coruja de Minerva, conhecida por espalhar suas asas no final do dia e pouco antes do anoitecer, ou a ainda mais comum propensão de objetos, como assinalado por Heidegger, de serem transportados a partir do estado de "esconder à luz", de ficarem imersos na obscura condição de zuhanden (atenção), para a visibilidade da deslumbrante vorhanden (presença) não antes do seu fracasso, uma queda fora da rotina, ou de outra forma frustrando (em regra, apenas tácita e meio-consciente) as expectativas, em outras palavras, as coisas tornam-se conhecidas graças ao seu desaparecimento ou chocantes mudanças.
   
Na verdade, nós nos tornamos perfeitamente conscientes do papel aterrorizante que as categorias de «risco», « cálculo de risco " e "assumir riscos" desempenhou na nossa história moderna, só no momento em que o termo "risco" perdeu muito da sua antiga utilidade e foi chamado a ser utilizado (como Jacques Derrida sugeriria) sous rature [dispositivo filosófico criado por Martin Heiddegger e amplamente utilizado por Jacques Derrida, significa que uma palavra é "insuficiente mas ainda necessária"] nada melhor, depois de ter virado (conforme Beck) em um "conceito zumbi".
   
Quando, em outras palavras, o tempo já chegou a substituir o conceito de Risikogesellschaft [Sociedade de risco] com a de Unsicherheitglobalschaft [Doses de incertezas globais] Nossos perigos diferem daqueles que a categoria de "risco" esforçou para capturar e trazer à luz por um ser não nomeado e flagrante, imprevisível e incalculável. E o cenário no qual os nossos riscos nascem, a partir do qual emergem, já não é enquadrado pela Gesellschaft [Sociedade] - a menos que a "Gesellschaft" é limítrofe com toda a população do planeta.
   
   
Disparidade Institucional
   
Eu já mencionei a progressiva separação que se inclina desconfortavelmente para um divórcio entre o poder e a política - os dois parecem parceiros inseparáveis durante os últimos dois séculos, ou acreditava-se e postulou-se a residir no interior do território do Estado-nação. Essa separação levou ao desfasamento entre as intituições de poder e as de política. Poder tem evaporado a partir do nível do Estado-nação, para a política do livre "espaço de fluxos" (utilizando uma expressão de Manuel Castells), deixando a política instalada, como antes, na residência compartilhada anteriormente, agora degradada ao "espaço de lugares".
   
O crescimento de poder que importa (isto é, o poder que pode não ter a palavra final mas, pelo menos, a influência principal e decisiva sobre a definição de opções em aberto para os encarregados das decisões) já virou global; a política, entretanto, manteve-se local como antes. Assim, o momento do mais relevante poder fica fora do alcance das instituições políticas existentes, considerando que a moldura para manuseio no centro da política estatal continua a encolher.
   
O estado planetário de coisas está agora golpeado por conjuntos ad-hoc de discordâncias não constrangidas pelos poderes de controle político, devido à crescente impotência das instituições políticas existentes. Estas últimas são, assim, forçadas a limitar severamente as suas ambições e dessocializar, terceirizar ou desregulamentar um número crescente de funções tradicionalmente confiadas à governança dos Estados nacionais para agências do espectro não-político.
   
O emagrecimento da esfera política (no seu sentido institucionalizado ortodoxo) é uma auto-propulsão, como a perda de relevância dos sucessivos segmentos da política nacional repercute na erosão nos cidadãos do interesse na política institucionalizada, e na tendência generalizada à substituição junto com a experimentação de uma quase incipiente e rudimentar política do livre fluxo mediado eletronicamente mediada - eficiente para a sua rapidez, mas também para a sua não delegação, a curto prazo, não questionabilidade, fragilidade, e não resistência, ou talvez mesmo imune a institucionalização (todas essas qualidades mutuamente reforçadas e dependentes).
   
Resumindo: enfrentar o desafio triplo é encontrar uma saída do estado de interregno, bem como a não resgatável incerteza exigiria a restauração da comensurabilidade do poder e política. A incerteza de hoje está enraizada no espaço mundial, essa tarefa pode ser realizada exclusivamente a nível mundial, e apenas pela (infelizmente, ainda não existente) globalização da dimensão da legislação, do executivo, da instância judicial e de instituições.
   
Este desafio traduz como o postulado de complementar o agora quase inteiramente "negativo" da globalização (ou seja, a globalização das forças intrinsecamente hostis à política institucionalizada - como capitais, finanças, comércio de commodities, informação, criminalidade, tráfico de drogas e de armas, etc) por sua contrapartida "positiva" (como, por exemplo, a globalização da representação política, legislação e jurisdição), que ainda não começou seriamente.

Uma sociologia da "pós-modernidade"

Bauman é um dos maiores sociólogos contemporâneos. Produziu inúmeros livros sobre a "pós-modernidade" e seus desafios. A seguir uma entrevista retirada da Revista Cult (edição 138).

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Cult - 138

03/08/2009

A utopia possível na sociedade líquida

O sociólogo afirma que é preciso acreditar no potencial humano 
para que um outro mundo seja possível
   
Por: Dennis de Oliveira

   
Zygmunt Bauman é um dos pensadores contemporâneos que mais têm produzido obras que refletem os tempos contemporâneos. Nascido na Polônia em 1925, o sociólogo tem um histórico de vida que passa pela Segunda Guerra Mundial, pela ativa militância em prol da construção do socialismo no seu país sob a direta influência da extinta União Soviética e pela crise e desmoronamento do regime socialista.
   
Atualmente, vive na Inglaterra, em tempo de grande mobilidade de populações na Europa. Professor emérito de sociologia da Universidade de Leeds, Bauman propõe o conceito de "modernidade líquida" para definir o presente, em vez do já batido termo "pós-modernidade", que, segundo ele, virou mais um qualificativo ideológico.
   
Bauman define modernidade líquida como um momento em que a sociabilidade humana experimenta uma transformação que pode ser sintetizada nos seguintes processos: a metamorfose do cidadão, sujeito de direitos, em indivíduo em busca de afirmação no espaço social; a passagem de estruturas de solidariedade coletiva para as de disputa e competição; o enfraquecimento dos sistemas de proteção estatal às intempéries da vida, gerando um permanente ambiente de incerteza; a colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual; 
o fim da perspectiva do planejamento a longo prazo; e o divórcio e a iminente apartação total entre poder e política. A seguir, a íntegra da entrevista concedida pelo sociólogo à revista CULT.
   
   
CULT - Na obra Tempos líquidos, o senhor afirma que o poder está fora da esfera da política e há uma decadência da atividade do planejamento a longo prazo. Entendo isso como produto da crise das grandes narrativas, particularmente após a queda dos regimes do Leste Europeu. Diante disso, é possível pensar ainda em um resgate da utopia?
   
Zygmunt Bauman - Para que a utopia nasça, é preciso duas condições. A primeira é a forte sensação (ainda que difusa e inarticulada) de que o mundo não está funcionando adequadamente e deve ter seus fundamentos revistos para que se reajuste. A segunda condição é a existência de uma confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo, a crença de que "nós, seres humanos, podemos fazê-lo", crença esta articulada com a racionalidade capaz de perceber o que está errado com o mundo, saber o que precisa ser modificado, quais são os pontos problemáticos, e ter força e coragem para extirpá-los. Em suma, potencializar a força do mundo para o atendimento das necessidades humanas existentes ou que possam vir a existir.
   
   
CULT - Por que se fala tanto hoje de "fim das utopias"?
   
Bauman - Na era pré-moderna, a metáfora que simboliza a presença humana é a do caçador. A principal tarefa do caçador é defender os terrenos de sua ação de toda e qualquer interferência humana, a fim de defender e preservar, por assim dizer, o "equilíbrio natural". A ação do caçador repousa sobre a crença de que as coisas estão no seu melhor estágio quando não estão com reparos; de que o mundo é um sistema divino em que cada criatura tem seu lugar legítimo e funcional; e de que mesmo os seres humanos têm habilidades mentais demasiado limitadas para compreender a sabedoria e harmonia da concepção de Deus.
   
Já no mundo moderno, a metáfora da humanidade é a do jardineiro. O jardineiro não assume que não haveria ordem no mundo, mas que ela depende da constante atenção e esforço de cada um. Os jardineiros sabem bem que tipos de plantas devem e não devem crescer e que tudo está sob seus cuidados. Ele trabalha primeiramente com um arranjo feito em sua cabeça e depois o realiza.
   
Ele força a sua concepção prévia, o seu enredo, incentivando o crescimento de certos tipos de plantas e destruindo aquelas que não são desejáveis, as ervas "daninhas". É do jardineiro que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias. Se ouvimos discursos que pregam o fim das utopias, é porque o jardineiro está sendo trocado, novamente, pela ideia do caçador.
   
   
CULT - O que isso significa para a humanidade de hoje?
   
Bauman - Ao contrário do momento em que um dos tipos passou a prevalecer, o caçador não podia cuidar do global equilíbrio das coisas, natural ou artificial. A única tarefa do caçador é perseguir outros caçadores, matar o suficiente para encher seu reservatório. A maioria dos caçadores não considera que seja sua responsabilidade garantir a oferta na floresta para outros, que haja reposição do que foi tirado.
   
Se as madeiras de uma floresta forem relativamente esvaziadas pela sua ação, ele acha que pode se deslocar para outra floresta e reiniciar sua atividade. Pode ocorrer aos caçadores que um dia, em um futuro distante e indefinido, o planeta poderia esgotar suas reservas, mas isso não é a sua preocupação imediata, isso não é uma perspectiva sobre a qual um único caçador, ou uma "associação de caçadores", se sentiria obrigado a refletir, muito menos a fazer qualquer coisa.
   
Estamos agora, todos os caçadores, ou ditos caçadores, obrigados a agir como caçadores, sob pena de despejo da caça, se não de sermos relegados das fileiras do jogo. Não é de admirar, portanto, que, sempre que estamos a olhar a nosso redor, vemos a maioria dos outros caçadores quase sempre tão solitária quanto nós. Isso é o que chamamos de "individualização".
   
E precisamos sempre tentar a difícil tarefa de detectar um jardineiro que contempla a harmonia preconcebida para além da barreira do seu jardim privado. Nós certamente não encontraremos muitos encarregados da caça com interesse nisso, e sim entretidos com suas ambições. Esse é o principal motivo para as pessoas com "consciência ecológica" servirem como alerta para todos nós. Esta cada vez mais notória ausência do jardineiro é o que se chama de "desregulamentação".
   
"Para que a utopia renasça, é preciso a confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo"
   
   
CULT - Diante disso, a esquerda não tem possibilidades de ter força social?
   
Bauman - É óbvio que, em um mundo povoado principalmente por caçadores, não há espaço para a esquerda utópica. Muitas pessoas não tratam seriamente propostas utópicas. Mesmo que saibamos como fazer o mundo melhor, o grande enigma é se há recursos e força suficientes para poder fazê-lo.
   
Essas forças poderiam ser exercidas pelas autoridades do engenhoso sistema do Estado-nação, mas, como observou Jacques Attali em La voie humaine, "as nações perderam influência sobre o curso das coisas e delegaram às forças da globalização todos os meios de orientação do mundo, do destino e da defesa contra todas as variedades do medo". E as forças da globalização são tudo, menos instintos ou estratégias de "jardineiros", favorecem a caça e os caçadores da vez.
   
O Thesaurus [dicionário da língua inglesa, de 1892] de Roget, obra aclamada por seu fiel registro das sucessivas mudanças nos usos verbais, tem todo o direito de listar o conceito de utópico como "fantasia", "fantástico", "fictício", "impraticável", "irrealista", "pouco razoável" ou "irracional". Testemunhando assim, talvez, o fim da utopia.
 
Se digitarmos a palavra utopia no portal de buscas Google, encontraremos cerca de 4 milhões e 400 mil sites, um número impressionante para algo que estaria "morto". Vamos, porém, a uma análise mais atenta desses sites. O primeiro da lista e, indiscutivelmente, o mais impressionante é o que informa aos navegantes que "Utopia é um dos maiores jogos livres interativos online do mundo, com mais de 80 mil jogadores".
   
Eu não fiz uma pesquisa em todos os 4 milhões de sites listados, mas a impressão que tive após uma leitura de uma amostra aleatória é que o termo utopia aparece em marcas de empresas de cosméticos, de design de interiores, de lazer para feriados, bem como de decoração de casas. Todas as empresas fornecem serviços para pessoas que procuram satisfações individuais e escapes individuais para desconfortos sofridos individualmente.
   
"A ideia de progresso foi transferida da ideia de melhoria partilhada para a de sobrevivência do indivíduo"
   
   
CULT - Nesta sociedade líquido-moderna, como fica a ideia de progresso e de fluxos de tempo?
   
Bauman - A ideia de progresso foi transferida da ideia de melhoria partilhada para a de sobrevivência do indivíduo. O progresso é pensado não mais a partir do contexto de um desejo de corrida para a frente, mas em conexão com o esforço desesperado para se manter na corrida. Você ouve atentamente as informações de que, neste ano, "o Brasil é o único local com sol no inverno", neste inverno, principalmente se você quiser evitar ser comparado às pessoas que tiveram a mesma ideia que você e foram para lá no inverno passado.
   
Ou você lê que deve jogar fora os ponchos que estiveram muito em voga no ano passado e que agora, se você os vestir, parecerá um camelo. Ou você aprende que usar coletes e camisetas deve "causar" na temporada, pois simplesmente ninguém os usa agora.
   
O truque é manter o ritmo com as ondas. Se não quiser afundar, mantenha-se surfando - e isso significa mudar o guarda-roupa, o mobiliário, o papel de parede, o olhar, os hábitos, em suma, você mesmo, quantas vezes puder. Eu não precisaria acrescentar, uma vez que isso deva ser óbvio, que essa ênfase em eliminar as coisas - abandonando-as, livrando-se delas -, mais que sua apropriação, ajusta-se bem à lógica de uma economia orientada para o consumidor. Ter pessoas que se fixem em roupas, computadores, móveis ou cosméticos de ontem seria desastroso para a economia, cuja principal preocupação, e cuja condição sine qua non de sobrevivência, é uma rápida aceleração de produtos comprados e vendidos, em que a rápida eliminação dos resíduos se tornou a vanguarda da indústria.

domingo, 12 de julho de 2009

Argumentos e sua avaliação crítica

Eis mais um exemplo, dentre tantos, da importância de avaliarmos argumentos logicamente, embora nosso período histórico esteja se notabilizando por negar ao raciocínio lógico importância substantiva e, consequentemente, negar a possibilidade de qualquer verdade, uma vez que a noção de verdade exige o raciocínio lógico desprezado pelos "pós-modernos".

O argumento avaliado será o famoso, e polêmico, argumento do filósofo medievo Anselmo de Aosta (1033-1109) quanto à necessidade da existência de "Deus" (o "Deus" cristão, bem entendido). Para ler o interessante artigo acadêmico de Pedro Merlussi (Universidade Federal de Ouro Preto) clique aqui.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O "kit" de Carl Sagan para detecção de afirmações nonsense

Carl Sagan propôs certa feita que fosse criado um "kit" para detecção de bobagens, afirmações nonsense tais como: fenômenos parapsicológicos, ufos, fantasmas, poderes mentais etc.

Eis o "kit" em uma tradução livre:

As 10 questões ("Kit" para detecção de afirmações nonsense)

1. Quão confiável é a fonte da afirmação?

2. A mesma fonte faz outras afirmações semelhantes?

3. A afirmação foi verificada por alguém mais?

4. A afirmação se ajusta ao modo como o mundo funciona?

5. Houve alguém que tentou refutar a afirmação?

6. Quão preponderante  são as evidências?

7. Aquele que afirma segue as regras científicas?

8. Quem afirma proporciona alguma evidência positiva?

9. A "nova teoria" explica mais fenômenos do que a antiga?

10. Existem crenças pessoais envolvidas na afirmação?

Fonte: http://www.michaelshermer.com/2009/06/baloney-detection-kit/

sábado, 27 de junho de 2009

10 erros comuns sobre a Filosofia

Encontrei, navegando pela Internet, essa interessante reflexão do prof. de filosofia para o ensino secundário em Portugal, Rolando Almeida.

10 falsas questões sobre a filosofia! 


1. A filosofia é difícil
É falso que se fale da filosofia como uma disciplina difícil. Ela é tão difícil quanto outra disciplina qualquer. Há, certamente, disciplinas mais difíceis e outras mais fáceis. A dificuldade não ocupa um lugar de destaque mais na filosofia do que na física, biologia ou na matemática.

2. A filosofia não serve para nada
Bem, isto só seria verdade se nos mentissem acerca da filosofia. Questionar sobre a utilidade da filosofia possui exactamente o mesmo sentido do que questionar acerca da utilidade da matemática, da física, química ou biologia. A filosofia tem exactamente a mesma utilidade que qualquer outra disciplina, só que a natureza dos seus problemas é diferente e exige metodologias específicas. Perguntar pela utilidade da filosofia é perguntar pela utilidade do saber em geral e a resposta não deve ser colocada somente aos profissionais da filosofia, mas também aos dos outros saberes. Curiosamente o mundo não seria o que é se os saberes não possuíssem uma utilidade.

3. Em filosofia nunca se chega a conclusões
É falso pensar que em filosofia nunca se chega a conclusões. Se assim fosse também o poderíamos dizer em relação à ciência. O que nós conhecemos da ciência são os resultados desta, porque as grandes questões da ciência ainda andam em investigação, tal qual as grandes questões da filosofia. A diferença é que ao passo que a ciência pode recorrer à experimentação, a filosofia não pode dada a natureza dos seus problemas que não são resolvidos empiricamente.

4. A filosofia é um saber abstracto que não tem nada a ver com a vida
Pelo contrário. A filosofia é talvez o saber que mais directamente se relaciona com a nossa vida prática e quotidiana, daí por vezes se fazer a confusão ao pensar-se que qualquer pessoa está a fazer filosofia ao se questionar sobre um ou outro problema. Os problemas da filosofia surgem porque a vida humana os levanta. Para isso existem muitos ramos do saber a fim de os estudar. A filosofia é um desses ramos.

5. Todos somos filósofos
É falso. Não é qualquer pessoa que é filósofa, apesar de qualquer pessoa ser perfeitamente capaz de levantar problemas filosóficos a um nível intuitivo. De igual modo, também as crianças fazem muitas questões científicas e isso não faz delas cientistas. De que é feita a lua? Porque é que nunca apanho o arco irís, etc…. Podemos igualmente perguntar se Deus existe ou não, se o livre arbítrio faz ou não sentido, sobre o sentido moral do aborto, sobre o que é o tempo e a sua relação com o espaço, etc…., mas daí não decorre que sejamos filósofos. A filosofia faz-se e investiga-se nas mais avançadas universidades do mundo e possui altos níveis de sofistificação. Ser um filósofo profissional, implica publicar ensaios nas revistas da especialidade e contribuir de modo decisivo para o progresso e avanço da filosofia. E isso não está ao alcance de todos e exige um trabalho disciplinado e árduo. Mas daí não decorre problema algum. Também na matemática, sabemos muita matemática a um nível intuitivo e nem por isso somos matemáticos. Depende do nível de sofistificação que queremos alcançar. E os grandes investigadores precisam muito dos bons divulgadores, como é o caso dos bons professores.

6. Em filosofia tudo é subjectivo
Esta é uma outra ideia falsa que aparece muitas vezes em relação à filosofia. Pensa-se que a filosofia não é nada mais do que um grupo de gente tola, cada um a dar a sua opinião sobre um assunto qualquer. Mas a defesa da subjectividade é auto refutante em termos racionais. Se eu defender que a filosofia é subjectiva, o meu leitor pode defender que não, que é objectiva. Terei de aceitar a posição do meu leitor precisamente porque a posição do leitor é, para mim, subjectiva. E entramos num círculo racionalmente insustentável. Por outro lado, se a filosofia é subjectiva, então, qual a razão da discussão racional? Nada haveria a discutir dado que a verdade não passaria de algo muito subjectivo. Toda a discussão possível não passaria de uma mera e modesta troca de opiniões. Mas nesse caso não existiria qualquer progresso no saber e cultura humana. Não devemos esquecer que as grandes teorias matemáticas e científicas ainda estão por resolver, precisamente porque, tal como na filosofia, não existe progresso sem problemas e razões que apontem conclusões para esses problemas.

7. A filosofia é algo que se faz quando se tem muito dinheiro e nada para fazer
Muita gente famosa parodiou este lado da filosofia, associando-a ao ócio que é precisamente o contrário do negócio (negar o ócio). Apesar da filosofia não constituir para a maior parte das pessoas uma necessidade vital, como é dormir, comer e beber ou respirar, a verdade é que ela se faz por necessidade de compreensão do mundo. A maior parte dos grandes filósofos pensaram sem grandes condições para o fazer. A riqueza material não tem necessariamente de andar associada à filosofia. É natural que se faça e publique mais filosofia onde há mais dinheiro, mas isso somente porque alguém pode viver da filosofia, pode ser pago para investigar e pensar determinado problema filosófico. Mas, novamente, esta é uma realidade que também se aplica a qualquer ramo do saber ou a toda a ciência. Não são as culturas material e culturalmente pobres que produzem e têm acesso à investigação. De modo que supor que a filosofia se faz quando não se tem mais nada para fazer e se tem muito dinheiro, é falso.

8. Não é preciso ensinar filosofia nas escolas
Para mostrar o quanto esta afirmação é falsa, prefiro apresentar alguns exemplos. Uma boa parte dos países ocidentais até nem têm filosofia no ensino secundário como formação geral e obrigatória, como existe em Portugal. Mas têm o chamado critical thinkink que é uma área muito próxima dos modelos mais específicos da filosofia. Por outro lado, esses países vêm garantido o sucesso da filosofia no ensino superior uma vez que possuem uma cultura mais sólida que permite que as pessoas vão de encontro ao saber e à filosofia. Há um interesse e sucesso quase natural pela filosofia, especialmente após a segunda metade do sec. XX e livros de filosofia ganham quase todos os anos importantes prémios. Só se consegue ter ideias tolas como esta e a de que a filosofia não serve para nada, numa sociedade ignorante que não reconhece o valor intrínseco da educação. Olhar para a filosofia e afirmar que ela não serve para nada, é de uma ignorância tão tola que faz lembrar aquela pergunta: o que faz um burro a olhar para um palácio? Mas os seres humanos, muito mais que os burros, podem ser educados a olhar para palácios. (...) 


9. Em filosofia tem de se ler muito e escrever muito
É evidente que para se saber filosofia temos de saber os argumentos dos filósofos. Imagine que vai ter com os amigos ao café e começa uma conversa sobre a justiça na distribuição da riqueza. Imagine ainda o leitor que na mesma mesa estão sentadas mais 4 pessoas além de si. Imagine agora também que começaria a debater argumentos sobre o tema não querendo saber das posições das outras 4 pessoas e ainda por cima afirmava que X e Y defendem a posição A, mesmo sem ter perguntado a X e Y que posições defendem. Uma das consequências mais prováveis é que o leitor poderia partir do princípio que:


a) As suas posições são a verdade absoluta sobre o problema da justiça na distribuição da riqueza.


b) Poderia o leitor estar a pensar que estava a ser muito original, quando X defende a mesma posição mas até com melhores argumentos.


Seria esta uma situação desejável. Mas vamos mais longe. Imagine que a conversa era sobre o cosmos e que o leitor estava a defender o geocentrismo por pura ignorância. Sem querer saber do que X e Y pensam e conhecem acerca do assunto, o leitor nunca descobriria uma verdade elementar: que está completamente errado, uma vez que o geocentrismo já foi refutado há muitos séculos atrás.

A mesma coisa sucede na filosofia, como sucede em qualquer outro saber ou ciência. Para discutir os problemas filosóficos de um modo profissional, temos de entrar em discussão com os argumentos dos filósofos e é por essa razão que precisamos de ler o que Platão ou Descartes pensaram acerca do problema, quais os argumentos apresentados. A prova de fogo pela qual o aprendiz de filósofo tem de passar é exactamente a mesma que quaalquer cientista tem de passar. Tem de sujeitar os seus «insights» à crítica dos seus pares. Um charlatão não passa esta prova de fogo e está condenado a escrever os seus argumentos sem pés nem cabeça no jornal da terra. Neste contexto, o texto escrito e lido é obviamente um dos recursos fundamentais dos filósofos, apesar de não o único. Alguns filósofos conseguiram apresentar argumentos revolucionários e nem por isso escreveram muito. Wittgenstein é só um entre centenas de exemplos. Outros escreveram muito e nem por essa razão conseguiram ser autores centrais para a filosofia.

10. Em filosofia tem de se ser muito profundo
Em filosofia não tem de se ser mais profundo do que em matemática ou química. Em primeiro lugar deve-se privilegiar a clareza que nem sempre coincide com facilidade, dependendo do estudo que se realize. Obviamente se estamos a falar de filosofia como eu estou a falar neste texto, não se exige profundidade alguma. Exige-se clareza e rigor. A ideia da profundidade em ciência e filosofia, diz respeito à sofisticação dos problemas em análise. Se estamos numa área como a Lógica Modal, envolvendo a discussão de conceitos como possibilidade e necessidade, o mais provável é que a discussão não seja muito acessível a quem não possui qualquer preparação em filosofia. A mesma questão é atribuível a uma qualquer investigação em física ou química. Mas, regra geral, estas teorias mais profundas podem ser expostas a um nível mais intuitivo. E porque é que existe esta necessidade de explicar aos mais leigos os problemas mais sofisticados? Por uma razão muito simples. Somos seres limitados no tempo e um dia alguém vai ter de continuar os nossos estudos, desenvolvendo-os e possibilitando novas descobertas, por isso temos de ensinar aquilo que sabemos ou condenamos o saber à sua morte. Depois porque um filósofo só descobre as fragilidades das razões que oferece em favor das suas teses se um outro o puder estudar e refutar.

Fonte: http://alfafilos.blogspot.com/2007/07/10-falsas-questes-sobre-filosofia.html

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Uma reflexão sobre as "leituras" pós-modernas por meio de um clássico contemporâeno

Ao contrário das "leituras" pós-modernas (seja lá o que isso for), "jogos de linguagem", na perspectiva de Ludwig Wittgenstein, não significa que não há verdade e, portanto, tudo seria apenas "jogos". Mesmo porque uma tal interpretação desavisada, do livro Investigações Filosóficas (doravante I.F.), incorre em contradição performática, pois os "jogos" existem e, quaisquer que sejam, são verdadeiros. Derivar daí um extremo relativismo demonstra de três possibilidades, uma: ou que não se leu I.F., ou que não se entedeu o que se leu, ou que a "leitura" atende a outros propósitos do que pretendeu Wittgenstein. Tal é o caso das "leituras" pós-modernas, por exemplo.
O que Wittgenstein percebeu a partir das críticas de Frank Ramsey e de seu amigo, o economista Piero Sraffa, foi que a linguagem é basicamente COMPORTAMENTAL, ou seja, a ideia clássica REPRESENTACIONAL está errada se se entender por REPRESENTAÇÃO algo como ESPELHAR a realidade. Não há um "fora" para ser espelhado (REPRESENTADO) aqui "dentro".
Contudo, isso não é a mesma coisa que afirmar ser tudo ABSOLUTAMENTE vago e, portanto, afirmar um vale-tudo PÓS-MODERNO, o qual cumpre bem o papel de fundo ideológico à produção do nonsense contemporâneo (indústria de livros de autoajuda, "ficções históricas" tais como a de Dan Brown etc.).

terça-feira, 2 de junho de 2009

Os quatro pilares da filosofia analítica

A filosofia analítica é uma das mais poderosas perspectivas contemporâneas da filosofia. Contudo, existe inúmeros enganos quanto à filosofia analítica. Muitos dos enganos foram tratados nos textos de Desidério Murcho; de Timothy Williamson ou de François Recanati.
A seguir apresento a síntese de François Recanati quanto às principais características da filosofia analítica, erroneamente confundida apenas com uma filosofia da linguagem.

1) a clareza e a sobriedade;
2) o recurso aos argumentos;
3) a precisão, a minúcia e o carácter explícito das teses e dos argumentos;
4) a recusa de reduzir a filosofia à história da filosofia.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Por que raciocinar é imprescindível

Eis um exemplo do exercício do raciocínio diante da teoria de um dos grandes filósofos do séc. XX, Karl R. Popper. O querido amigo, Prof. Desiderio Murcho, exemplifica o porquê de não podermos aderir automaticamente a uma idea apenas por ter sido apresentada por alguém considerado genial - entenda-se autoridade inconteste.
O professor Desiderio exemplifica também o método da filosofia analítica por excelência: clareza.

Boa leitura!!!



Um diálogo sobre o falsificacionismo

Desidério Murcho
Universidade Federal de Ouro Preto


Asdrúbal — Gostei muito da aula de hoje. Achei a teoria de Popper fascinante! A ideia de dar importância ao que se pode provar que é falso em vez de dar importância ao que se pode provar que é verdadeiro é realmente brilhante.

Adamanância — Pois... eu não fiquei assim tão bem impressionada. Gostei da aula; a professora é o máximo. Mas a teoria de Popper parece-me subtilmente errada, ainda que aponte numa direcção correcta.

Asdrúbal — Que queres dizer com isso?

Adamanância — É um pouco como ter uma teoria da queda dos objectos. Como realmente os objectos caem, parece logo que a teoria é verdadeira — porque tem de ter um grão de verdade, já que nos diz algo que é óbvio. O problema é saber se, em termos mais precisos e rigorosos, a teoria é realmente verdadeira.

Asdrúbal — Sim, estou a ver a analogia. Uma teoria pode ser falsa apesar de ter aspectos verdadeiros, exactamente como acontece com a teoria da gravitação de Newton. Mas não vejo como aplicas a analogia ao falsificacionismo de Popper.

Adamanância — Bom, isto vai levar algum tempo a discutir. E que tal se formos para casa do Afrânio? Sei que ele já estudou esta matéria e que gosta de discutir ideias.

Asdrúbal — OK, vou telefonar-lhe para saber se está em casa.

...

Afrânio — Viva, pessoal! Que história é essa de andarem a pôr Popper em causa? Não sabem que os grandes filósofos nunca se enganam?

Adamanância — Tolices, claro que se enganam e erram, como toda a gente. Apenas têm ideias mais sofisticadas do que as outras pessoas. Tal como os cientistas se enganam, e os poetas e os místicos. Ainda está para nascer o primeiro ser humano que não erre.

Afrânio — Eu sei! Disse isto só para me meter contigo porque já sabia que ias responder isso. O que estavam vocês a discutir relativamente a Popper?

Asdrúbal — Estávamos a discutir a falsificabilidade, pois tivemos uma aula muito boa sobre isso. Tu já estudaste isso, certo? A mim pareceu-me que a falsificabilidade é uma ideia brilhante, e mata dois coelhos com uma cajadada: permite resolver, ou melhor, dissolver, o problema da indução, e resolver o problema da demarcação.

Afrânio — É de facto uma ideia notável. Vale a pena recordar o que está em causa nos dois casos. No primeiro, trata-se de defender que as ciências empíricas como a biologia ou a física não dependem da indução — o que é uma sorte porque Popper pensa que a indução é uma forma errada de raciocínio, ou pelo menos uma forma irracional de raciocinar, dado ser impossível (pensa ele) justificar o raciocínio indutivo.

Adamanância — Bem explicado. Popper considera, por razões que não são completamente claras para mim, que Hume tem a última palavra no que respeita à indução: é um tipo de raciocínio insusceptível de justificação, ao contrário da dedução. Não fiquei nem um pouco convencida com o problema da indução tal como Hume o levanta, e por isso também não me fiquei muito impressionada com a tentativa de Popper de conceber as ciências empíricas sem recorrer à indução. A meu ver a indução é crucial e é justificável, mesmo que tal justificação não seja tão óbvia como acontece na dedução.

Afrânio — Não tenho assim tanta certeza na justificabilidade da indução, mas compreendo o teu ponto de vista. Em qualquer caso, a ideia de Popper é explicar o raciocínio das ciências empíricas sem recorrer à indução. Se conseguir fazer isso, dissolveu, do seu ponto de vista, o problema da indução.

Asdrúbal — Sim, isso é claro para mim. No fundo, trata-se de pôr um modus tollens no lugar da indução. Por indução, raciocinamos assim: "Todos os corvos que vi até hoje são pretos; logo, todos os corvos são pretos". Por modus tollens, raciocinamos assim: "Se todos os corvos forem pretos, nenhum corvo pode ser branco; mas eis um corvo branco; logo, nem todos os corvos são pretos." Basta um corvo branco para provar que nem todos os corvos são pretos, mas nenhum número de corvos pretos observados pode provar que todos os corvos são pretos.

Adamanância — Exactamente. A ideia é que não podemos verificar que todos os corvos são pretos porque a indução é uma treta; mas podemos falsificar que todos os corvos são pretos dedutivamente, observando um corvo branco. E Popper usa depois a mesma ideia de falsificabilidade para distinguir a ciência da pseudociência — práticas que se fazem passar por ciência, mas que não o são.

Afrânio — Popper metia no saco das pseudociências a psicanálise e o marxismo. Podemos não concordar que a psicanálise ou o marxismo sejam pseudociências, mas concordar com o critério de falsificabilidade. Penso que agora não queremos discutir estes polémicos casos particulares, mas apenas discutir a falsificabilidade — quer como critério de demarcação entre ciência e pseudociência, quer como explicação do modo como se sustenta teorias científicas.

Asdrúbal — É isso mesmo. Eu achei brilhante a ideia de falsificação, nos seus dois papéis. Pareceu-me uma posição muitíssimo convincente, mas para minha surpresa — ou deveria dizer não surpresa? — a Adamanância pensa que Popper meteu o pé na argola algures.

Afrânio — Porquê não surpresa?

Asdrúbal — Porque a Adamanância está sempre a levantar objecções e contra-exemplos às ideias dos filósofos que estudamos nas aulas.

Adamanância — E qual é o problema de fazer isso?

Asdrúbal — Na verdade, nenhum. Acho apenas que és mais rápida do que eu a ver dificuldades. Ainda eu estou maravilhado com uma teoria ou argumento que me parece muitíssimo convincente e vens logo tu e estragas-me a festa.

Adamanância — Não quero estragar a festa seja de quem for, mas fazer filosofia não é apreciar a beleza das ideias dos filósofos, mas sim avaliá-las criticamente. Não é isso que o professor está sempre a dizer?

Asdrúbal — Claro! Estava só a brincar contigo. A verdade é que aprendo muito com as tuas objecções e contra-exemplos, porque parece que quando levantamos dificuldades às ideias de um filósofo as compreendemos muito melhor!

Afrânio — Concordo inteiramente: levantar dificuldades às ideias dos filósofos é a melhor maneira de as compreendermos. Estou por isso com curiosidade de ver que dificuldades a Adamanância levantou desta vez. Explica lá.

Adamanância — É relativamente simples. A objecção tem duas partes, intimamente relacionadas. Primeiro, todos podemos concordar, incluindo Popper, que se uma dada afirmação, conjectura ou algo do género for verdadeira, nunca iremos descobrir que é falsa.

Afrânio — Espera aí. Que queres dizer com "afirmação, conjectura ou algo do género"? Queres dizer teoria, argumento, proposição — o quê?

Adamanância — Não, argumento não pode ser, pois os argumentos não podem ser verdadeiros nem falsos, mas apenas válidos ou inválidos — ou já te esqueceste das aulas de lógica? Com "algo do género" quero dizer seja o que for que possa ter valor de verdade, ou seja, que possa ser verdadeiro ou falso. E entre as coisas que podem ter valor de verdade estão afirmações, proposições e teorias. Para o falsificacionismo não se exige qualquer uma delas em particular; o falsificacionismo aplica-se, se a teoria de Popper for verdadeira, a qualquer dessas afirmações ou conjecturas que os cientistas fazem e que pretendem ter carácter científico. São afirmações como "a atmosfera de Marte é composta pelos gases tal e tal"; ou afirmações mais gerais, como "a velocidade da luz é tal e tal"; ou afirmações ainda mais gerais e matematizadas, como a lei da queda dos corpos.

Afrânio — OK, já compreendi. E qual é a tua primeira objecção?

Adamanância — Simples. Pensa numa proposição qualquer desse género. Como eu sei que a velocidade da luz é de cerca de trezentos mil quilómetros por segundo podemos usar essa para já como exemplo. Chamemos P a essa afirmação.

Asdrúbal — Lá estás tu com os pês e os quês. Vamos ver se não me fazes é meter os pés pelas mãos com os pês e os quês!

Adamanância — Os pês e os quês servem apenas para facilitar a discussão. Em vez de estar sempre a falar da mesma afirmação, digo só P e vocês já sabem do que estou a falar. Portanto, falemos de P. Imaginemos que P é realmente verdadeira. Claro que hoje se pensa que é verdadeira — foi o resultado de medições cuidadosas. Mas é claro que ninguém mediu a velocidade de todos os feixes de luz do universo. Mediu-se apenas, muito cuidadosamente, a velocidade de alguns feixes de luz. O indutivista dirá que sabemos por indução que todos os feixes de luz têm essa velocidade. Popper dirá que P é apenas uma boa conjectura, porque ainda não foi refutada, mas que só é boa como conjectura científica genuína precisamente porque pode ser refutada, e não porque possa ser verificada.

Asdrúbal — Claro, se P pudesse ser verificada teria de ser indutivamente, mas Popper recusa tal coisa.

Afrânio — Este é um aspecto que me parece curioso, se me permitem a interrupção. É que os cientistas que hoje aplaudem Popper não vêem que eles mesmos não aceitam Popper. A verdade é que nenhum cientista empírico passa sem a indução; e em alguns casos os estudos e cálculos estatísticos e probabilísticos — que são formas de indução — são cruciais na ciência. De modo que muita da aceitação das ideias de Popper que se vê entre os cientistas me parece fruto de ignorância ou desatenção. Não é pura e simplesmente viável ser um cientista empírico — um biólogo, um físico, um astrónomo — e fazer trabalho de campo, ao invés de mero trabalho de tratamento de dados, e não usar a indução crucialmente. A indução parece estar no centro da teorização científica.

Adamanância — Bom, isso não sei, pois não sei muito sobre a actividade real, diária, dos cientistas. Mas, a julgar pela história da ciência, a indução parece realmente central nas ciências empíricas. Todavia, o meu argumento não depende dessa observação histórica, que poderá ser verdadeira ou falsa. Depende apenas, num primeiro passo, de reconhecer que se P é verdadeira, nunca se irá realmente falsificar P.

Asdrúbal — Não vejo porquê. Podemos medir a velocidade da luz e descobrir que afinal não era como pensávamos que era.

Adamanância — Mas isso quer apenas dizer que P era falsa desde o início. Ora, o que eu estou a dizer é que se P for verdadeira, não iremos jamais descobrir que é falsa. Como raio se pode descobrir que é falso algo que é verdadeiro?

Asdrúbal — Parece-me que estás a compreender mal as coisas. Claro que Popper não é tão idiota que pense que podemos descobrir que é falso algo que é verdadeiro. Se P é verdadeira, nunca iremos descobrir que é falsa. Mas a questão é que não sabemos se P é verdadeira ou falsa. P pode ser falsa, ainda que pensemos que é verdadeira. E o que conta para a falsificabilidade é isso mesmo.

Adamanância — Isso parece-me ridiculamente fraco, como teoria. Nesse caso, Popper estaria apenas a dizer que sempre que pensamos que uma proposição é verdadeira, podemos estar enganados porque a proposição é falsa. Dificilmente isso poderia ser encarado como um critério de demarcação ou sequer como uma maneira de dissolver o problema da indução. A ideia de Popper não é apenas essa banalidade de que podemos estar enganados. A ideia de Popper é que a proposição, ela mesma, pode ser falsa e é ao facto de ela poder ser falsa que ele chama falsificável.

Afrânio — Sim, neste aspecto tens razão. A ideia de Popper é contrastar proposições que podem ser falsas com proposições que não podem ser falsas. Chama-se a isso proposições contingentemente verdadeiras e proposições necessariamente verdadeiras. A ideia é que verdades analíticas, como "Nenhum solteiro é casado", ou aritméticas, como 7+5=12, não poderiam ser falsas — são necessariamente verdadeiras. Ao passo que as afirmações científicas empíricas sobre a velocidade da luz, etc., são contingentes, sejam elas verdadeiras ou falsas. Isto é, são afirmações que, mesmo que sejam verdadeiras, poderiam ter sido falsas se o mundo fosse diferente do que é; e mesmo que sejam falsas, poderiam ter sido verdadeiras se o mundo fosse diferente do que é.

Asdrúbal — Ah, OK, eu fiz uma confusão. Agora estou a lembrar-me que a professora até falou nisso. Ela disse que Popper pensava que o que acontecia com as afirmações pseudocientíficas é que nem eram analíticas nem falsificáveis, o que as colocava num limbo de falta de cientificidade, digamos assim. Do ponto de vista de Popper as únicas afirmações que não são falsificáveis são as analíticas — mas as afirmações da pseudociência são igualmente infalsificáveis, sem contudo serem analíticas, e é por isso que são pseudocientíficas. Para serem científicas, dado que não são analíticas, teriam de ser falsificáveis.

Adamanância — Muito bem, agora estamos a avançar. Ora bem, Popper não defende a ideia ridícula de que a falsificabilidade é apenas a nossa falibilidade. Que podemos estar enganados sempre que pensamos que uma afirmação é falsa é muito diferente de dizer que uma dada afirmação pode ser falsa, ainda que seja verdadeira. O primeiro passo do meu argumento é forçar a compreensão deste aspecto crucial, chamando a atenção para isto: se P for realmente verdadeira, nunca iremos descobrir que é falsa.

Asdrúbal — Certo, agora já entendo. Claro, se P é verdadeira nunca descobriremos que é falsa. O que se passa é que P, mesmo sendo verdadeira, poderia ter sido falsa — isto é, é contingentemente verdadeira, ao contrário das verdades analíticas.

Adamanância — E é aqui que entra a segunda parte do meu argumento. Como te lembras, P diz respeito à velocidade da luz. Popper está a pressupor que as proposições desse género são contingentes. E se não forem contingentes?

Afrânio — Diabo! Nunca tinha pensado nisso. E eu até estudei algumas ideias de filósofos como Putnam e sobretudo Kripke ou Plantinga, que defendem que há verdades necessárias que não são analíticas! Agora apanhaste-me, Adamanância. Esses e outros filósofos defendem a ideia aristotélica segundo a qual nem todas as proposições empíricas são contingentes, como se pensava tipicamente até ao séc. XX. Os seus argumentos são complicados, mas não tanto assim. E são muitíssimo convincentes. Todavia, não me parece uma boa estratégia usar uma teoria filosófica como objecção a outra teoria filosófica. Popper pode limitar-se a recusar as ideias desses filósofos.

Adamanância — O meu argumento não se baseia numa teoria contra outra. O meu argumento só mostra que Popper pressupõe a contingência de P, e que se P não for contingente, a teoria dele cai por terra — ou tem de ser de tal modo enfraquecida que se torna desinteressante.

Asdrúbal — Bolas, Adamanância. Agora estou a ver o que estás a fazer. Estás a atacar um pressuposto cego de Popper, digamos assim. Mas isso é precisamente o que muitos filósofos fazem quando criticam outros filósofos. Lembro-me de ter estudado as críticas de Kant ao argumento ontológico de Anselmo e de Descartes — a crítica de Kant, se bem a entendi, é que ambos pressupõem sem pensar que a existência é um predicado. E tu estás a dizer que Popper pressupõe sem pensar que P é contingente. Boa!

Adamanância — Não afirmo que Popper pressupõe algo sem pensar, porque não faço ideia do que pensava ele. O que afirmo é que a teoria dele precisa desse pressuposto, porque sem ele se torna uma teoria banal. A ideia é a seguinte: imaginemos que P é verdadeira. O primeiro passo é mostrar que a teoria de Popper se aplica explicando que P é verdadeira, mas poderia ser falsa — e que é precisamente porque P poderia ser falsa que é científica, dado não ser analítica. Aplicando a ideia ao problema da indução, nunca podemos provar que P é falsa, se for verdadeira, mas poderíamos provar que é falsa se fosse falsa. O segundo passo consiste em mostrar que se P for necessária, apesar de não ser analítica, não é pura e simplesmente falsificável. "Falsificável" quer dizer "pode ser falsificada"; mas é evidente que P só pode ser falsificada se pode ser falsa.

Afrânio — Hum... Espera aí. Por que estás a supor que o tal pode não se refere apenas a nós, em vez de se referir ao valor de verdade de P? Com certeza podemos enganar-nos e pensar que P é verdadeira e depois descobrir que é falsa. E portanto Popper poderia dizer que é nesse sentido que diz que P pode ser falsificada. Nesse caso, não estaria comprometido com a ideia de que P é realmente contingente.

Adamanância — Concedo que essa é uma resposta possível. Na verdade, penso que essa é a única resposta possível. Mas é terrivelmente má. Pois se "falsificável" quer dizer apenas "podemos estar enganados", a teoria de Popper é uma banalidade. Claro, podemos estar enganados quando pensamos que P é verdadeira. E depois? Como poderia isto constituir um critério de demarcação entre a ciência e a pseudociência? Como poderia isto constituir a sua famosa dissolução do problema da indução? Uma pessoa quer distinguir a biologia da bruxaria e o critério é que num caso, mas não no outro, podemos estar enganados quando pensamos que P é verdadeira? Isto é ridiculamente anémico. E no caso do problema da indução é ainda pior. Queremos saber o que justifica a nossa crença nas conclusões aparentemente indutivas. E vem Popper e explica-nos que na verdade não chegámos a P por indução; P é apenas uma conjectura e o que justifica a nossa crença nessa conjectura é que podemos estar enganados quando pensamos que P é verdadeira? Isto nem sequer conta como uma teoria filosófica sobre o problema da indução. É apenas uma tolice.

Afrânio — Estou estupefacto. Mas parece-me que tens razão. Pelo menos, não estou a ver como se poderia continuar a defender o falsificacionismo, quer como critério de demarcação, quer como solução do problema da indução.

Asdrúbal — A defesa parece-me simples: defender que as proposições empíricas das ciências são contingentes, sejam elas verdadeiras ou falsas.

Adamanância — Sim, a defesa é mesmo essa. Mas enveredar por essa defesa é aceitar o meu argumento. É aceitar que realmente a teoria de Popper exige que todas as proposições empíricas das ciências são contingentes. E isso era tudo o que eu queria defender. Não defendi ainda que algumas proposições empíricas das ciências não são contingentes. Nem preciso defender tal coisa. Tudo o que defendo é a seguinte tese condicional: se algumas proposições empíricas das ciências não forem contingentes, a teoria de Popper é falsa. Estabelecer a verdade da antecedente desta condicional é uma discussão diferente, e podemos deixá-la para outro dia.

Asdrúbal — Estou siderado. Bom, só falta explicares uma coisa.

Adamanância — O quê?

Asdrúbal — Disseste que a teoria de Popper está errada nos pormenores, mas que aponta na direcção correcta e que é isso que faz os cientistas pensarem que ele tem razão. O que querias dizer?

Adamanância — Repara: a teoria de Popper não é realmente uma teoria que nos diga que devemos procurar contra-exemplos às nossas teorias e afirmações. Isso é algo que decorre da teoria, digamos. Mas é essa banalidade que é verdadeira: não se pode ser epistemicamente virtuoso quando se é casmurro. E ser casmurro é recusar-se a aceitar objecções e contra-exemplos e dados contrários ao que se afirma. Quando não se é epistemicamente virtuoso, mas também não se é epistemicamente vicioso, não se é casmurro. Mas também não se procura activamente refutar o que pensamos — afinal, gostamos em geral de o que pensamos, e parece bizarro darmo-nos ao trabalho de tentarmos refutá-lo. Mas isso é precisamente o que caracteriza as ciências — ou a filosofia, ou a história — e que não caracteriza a bruxaria ou outras pseudociências. Nestes casos, somos casmurros. No caso das ciências, procuramos activamente refutar teorias e ideias. Isto é realmente importante e constitutivo das ciências, ou de qualquer prática cognitivamente relevante. E como o falsificacionismo implica que esta atitude é correcta, parece que o falsificacionismo é correcto. Mas isto é uma falácia: o falsificacionismo implica a virtude epistémica de procurar refutações; procurar refutações é realmente crucial; logo, o falsificacionismo está correcto.

Asdrúbal — Isso é a falácia da afirmação da consequente!

Adamanância — Nem mais. Seria como pensar que a teoria de Newton é verdadeira porque implica que os objectos caem e por ser realmente verdade que os objectos caem. A teoria de Popper implica um certo tipo de atitude epistemicamente virtuosa, que realmente corresponde ao que os cientistas estão habituados a fazer; daí a sua adesão. Mas isso não implica que a teoria é verdadeira.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

O fim do criacionismo literalista

Eis um artigo muito interessante sobre exegese bíblica. É claro que os literalistas irão subir pelas paredes, mas a "bíblia diz...". Para ler clique aqui.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Um país que não consegue resolver seus problemas sociais; gostemos ou não...

Apenas para uma brevíssima análise sobre as diferenças socioeconômicas no Brasil. A pesquisa foi realizada pela ONG Movimento Nossa São Paulo em 2009 nas subprefeituras de Pinheiros (um dos bairros nobres) e Embu Mirim (um dos bairros periféricos). As subprefeituras abrangem um conjunto de bairros próximos.

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Subprefeitura de Pinheiros:

Renda per capita: R$ 4.400,00
Grau de instrução: 33% com mais de 15 anos de estudos
Índice de mortalidade entre jovens (por 1000): 23
Índice de urbanização não-planejada: 0,3%
Investimentos da prefeitura per capita: R$ 98,00
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Subprefeitura de Embu Mirim:

Renda per capita: R$ 550,00
Grau de instrução: 1,9% com mais de 15 anos de estudos
Índice de mortalidade entre jovens (por 1000): 240
Índice de urbanização não-planejada: 25%
Investimentos da prefeitura per capita: R$ 44,00
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Note-se que os governos municipais investem mais nos bairros mais ricos onde os problemas sociais são menores. Note-se também que com uma tal disparidade socioeconômica o país não avança no desenvolvimento social urbano quanto a violência, por exemplo, por mais retórica que os políticos utilizem.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Evolução e incompreensão

Apesar das evidências, as quais corroboram a teoria da evolução de Charles Darwin, alguns segmentos religiosos continuam repetindo velhos chavões quanto a veracidade das ideias do pensador inglês.
O texto a seguir é uma, dentre muitas, reflexões sobre as ideias que mudaram a compreensão sobre nós mesmos. Para ler clique aqui.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

O poder da violência simbólica

Eis um artigo, dentre tantos, sobre o recorrente problema do assédio moral (bullying em inglês). A violência simbólica por ser invisível não raro é ignorada como algo irreal, abstrato ou uma mera fase passageira da infância, embora não se restrinja apenas a esta fase de nossa vida; mas não é assim. É insidiosa e desestrutura a identidade, bem como torna as pessoas moralmente fragilizadas. Para ler clique aqui.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Um dia aprenderemos...

Ao longo de minha vida profissional, extra e intra-acadêmica, tenho afirmado e reafirmado o quanto necessitamos aprender a trabalhar em equipe - um fato mundial o qual parece não fazer parte de nosso repertório nacional.
Eis uma matéria a qual derruba o velho mito brazuca segundo o qual "eu me viro sozinho" ou "finjo que trabalho em grupo" quando na verdade faço parte da famigerada "panelinha".
Para ler basta clicar aqui. Boa leitura!

segunda-feira, 6 de abril de 2009

"O deus-mercado está morto" - provocações de Daniel Bensaïd

Daniel Bensaïd foi um dos líderes na França em maio de 68. Filósofo político e leitor de Karl Marx, escreveu um livro provocador sobre as ideias do filósofo revolucionário alemão. O livro foi escrito em 2000, antes do 11 de setembro de 2001 e da guerra norte-americana com o Afeganistão e com o Iraque. Em forma estilística de "teoremas" propõe uma reflexão sobre o mundo contemporâneo.
Aqui resumo seus "teoremas" a fim de divulgá-los:

1. A política é irredutível à estética e à ética;
1.1 A política é irredutível à economia;
2. A política é irredutível às identidades comunitárias;
3. A dominação imperial não é solúvel nas beatitudes da globalização mercantil;
4. Quaisquer que sejam as palavras para expressá-lo, o comunismo é irredutível as suas falsificações burocráticas;
5. A dialética da razão é irredutível ao espelho quebrado da pós-modernidade;
6. A força da indignação é irredutível, recusa incondicionalmente a injustiça.

Quem se interessar pelo livro:

BENSAÏD, Daniel. Os Irredutíveis - Teoremas da Resistência para os Tempos Presentes. SP: Boitempo, 2000.

OBS.: O blog está sendo redigido dentro da Reforma Ortográfica de 2009.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Um vídeo para ser visto, revisto e divulgado

Raras vezes um vídeo consegue expor com tanta clareza todo um sistema, com sua complexidade, bem como os problemas relacionados a concepção de produção/consumo do capitalismo pós-industrial.
Uma leitura a qual reúne, pelo menos, três das perspectivas sociológicas clássicas: Marx, Durkheim e Weber, além da ecologia profunda do filósofo norueguês Arne Naess. Vale a pena ver, rever e divulgar...
Provavelmente você nunca mais verá a realidade social vigente com os mesmos olhos!

Clique no texto em hiperlink para assistir ao vídeo.

Uma análise sociológica da realidade mundial

sábado, 21 de março de 2009

Fé e Ciência

Eis uma matéria jornalística a qual traz os resultados de algumas pesquisas. Pesquisas assim têm de ser corroboradas por outras, ou seja, têm de ser falseadas (perspectiva de Popper) ou não são científicas. Por enquanto parecem sugestivas, embora eu suspeite muito de pesquisas sem contraprova. Contudo, segue o artigo por amor à verdade (qualquer que seja). Boa leitura.


A fé que faz bem à saúde

Novos estudos mostram que o cérebro é “programado” para acreditar em Deus – e que isso nos ajuda a viver mais e melhor

Letícia Sorg. Colaborou Marcela Buscato

Confira a seguir um trecho dessa reportagem que pode ser lida na íntegra na edição da revista Época de 21/março/2009.


A capacidade inata de procurar a explicação de um fenômeno é uma das diferenças entre o ser humano e outros animais. O homem primitivo não tinha como entender eventos mais complexos, como a erupção de um vulcão, um eclipse ou um raio. A busca de explicações sobrenaturais pode ser considerada natural. Mas por que ela desembocou na fé e no surgimento das religiões? Cientistas de diferentes áreas se debruçaram sobre a questão nos últimos anos e chegaram a conclusões surpreendentes. Não só a fé parece estar programada em nosso cérebro, como teria benefícios para a saúde.

Com sua intuição genial, Charles Darwin, criador da teoria da evolução há 150 anos, já havia registrado ideia semelhante no livro A descendência do homem, em 1871: “Uma crença em agentes espirituais onipresentes parece ser universal”. “Somos predispostos biologicamente a ter crenças, entre elas a religiosa”, diz Jordan Grafman, chefe do departamento de neurociência cognitiva do Instituto Nacional de Distúrbios Neurológicos e Derrame (leia a entrevista). Grafman é o autor de uma das pesquisas mais recentes sobre o tema, publicada neste mês na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences.

Em seu estudo, Grafman analisou o cérebro de 40 pessoas – religiosas e não religiosas – enquanto liam frases que confirmavam ou confrontavam a crença em Deus. Usando imagens de ressonância magnética funcional – que mede a oxigenação do cérebro –, o neurocientista descobriu que as partes ativadas durante a leitura de frases relacionadas à fé eram quase as mesmas usadas para entender as emoções e as intenções de outras pessoas. Isso quer dizer, segundo Grafman, que a capacidade de crer em um ser ou ordem superior possivelmente surgiu ao mesmo tempo que a habilidade de prever o comportamento de outra pessoa – fundamental para a sobrevivência da espécie e a formação da sociedade. E para estabelecer relações de causa e efeito. A interferência de um ser muito poderoso seria uma explicação eficiente para aplacar a necessidade de entender o que não se consegue explicar com o conhecimento comum.

Mas o que levaria o ser humano, dotado de razão, a acreditar que um velhinho de barba branca, em cima de uma nuvem, atira raios sobre a Terra? Ou que 72 virgens aguardam os fiéis no Paraíso? “Tendemos a atribuir características humanas às coisas, inclusive ao ser divino”, diz Andrew Newberg, neurocientista da Universidade da Pensilvânia (leia a entrevista), autor de outro importante estudo sobre o poder da meditação e da oração. “A crença religiosa surgiu como um efeito colateral da maneira como nossa mente é organizada, da maneira como ela funciona naturalmente”, diz Justin Barrett, antropólogo e professor da Universidade de Oxford.

Andrew Newberg - “O cérebro dos ateus é diferente”

O neurocientista fala sobre seu livro Como Deus muda seu cérebro
ÉPOCA – Como Deus pode mudar a estrutura cerebral das pessoas?
Andrew Newberg – Os nossos estudos usando imagens do cérebro mostram que, no longo prazo, há alterações no lobo frontal (relacionado à memória e à regulação das emoções) e no sistema límbico (ligado às emoções). As pessoas tendem a conseguir controlar mais suas emoções e expressá-las. A meditação e a oração ajudam a melhorar a relação consigo mesmo e com os outros. Também especulamos que essas práticas alteram, inclusive, a química cerebral, como os níveis de serotonina e dopamina, que regulam nosso humor, nossa memória e o funcionamento geral de nosso corpo, mas ainda não temos provas disso.

ÉPOCA – Em seu livro, o senhor fala bastante da meditação, uma prática tradicionalmente ligada às religiões orientais. Existe alguma diferença entre, por exemplo, o catolicismo e o budismo?
Newberg – Não olhamos exatamente para as diferenças entre as religiões, mas para as diferentes práticas. A forma como você pratica a religião é mais importante que as ideias religiosas em si.
ÉPOCA – Há um consenso entre os cientistas de que a fé pode ajudar na manutenção da saúde?
Newberg – Muitos cientistas acreditam que a espiritualidade tem um papel na saúde. A pergunta é quem vai administrar isso e como os profissionais de saúde vão lidar com a espiritualidade de uma maneira apropriada e benéfica. Essas questões ainda não foram respondidas.

ÉPOCA – Há alguma diferença neurológica entre aqueles que creem e os que não creem em Deus?
Newberg – Encontramos algumas diferenças, sim, e também notamos diferenças dependendo do tipo de prática religiosa. O problema é que nunca sabemos se aquelas mudanças estão lá porque a pessoa é religiosa há muito tempo ou se ela nasceu daquela maneira e, por causa disso, procurou um tipo de religião ou meditação.


Jordan Grafman - “A crença é necessária”

O neurocientista diz que o pensamento religioso nasceu junto com o cérebro humano
ÉPOCA – O senhor diria que a religião é um produto acidental de nosso processo evolutivo?
Jordan Grafman – Eu não diria acidental. Existe uma tendência para nós pensarmos de certa maneira, e essa maneira, de alguma forma, envolve a necessidade de ter um sistema de crenças. E esse sistema guia nosso comportamento social. Acredito que estamos constantemente criando novos tipos de sistema de crença e é muito provável que os primeiros tenham sido baseados em autoridades religiosas.

ÉPOCA – Somos biologicamente predispostos à religião?
Grafman – Eu diria que somos predispostos biologicamente a ter crenças, e a religiosa é uma delas, mas não a única. Classificaria a religião como uma forma primitiva de crença porque se baseia muito no que é desconhecido. Algumas das regras éticas vieram por meio da religião, mas só se estabeleceram porque ajudaram a ordenar a sociedade. Então, muitas regras tiveram sentido. A religião nasceu claramente de nossa necessidade de entender o que estávamos vendo.

A crença religiosa surgiu no cérebro antes de outras crenças, segundo pesquisas

ÉPOCA – Seu estudo comparou as áreas do cérebro envolvidas nas crenças religiosas e nas crenças políticas. Do ponto de vista neurológico, quais as diferenças entre o pensamento religioso e o político?
Grafman – Ainda não temos uma resposta definitiva a essa pergunta, mas há fortes indicações de que as crenças políticas estão sempre ligadas ao “aqui e agora”, a nossa vida, enquanto as crenças religiosas não necessariamente. Há diferenças em comportamento e também nas áreas do cérebro ativadas. No caso das crenças políticas, usamos as estruturas do cérebro que surgiram por último na evolução humana, enquanto no caso das crenças religiosas usamos áreas anteriores no desenvolvimento da espécie. Nossa hipótese é que a crença religiosa seja a primeira forma de sistema de crenças, que surgiu antes das outras. Nossos estudos mostram que as duas usam partes parecidas do cérebro, mas também que a religião veio antes da política.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Ateísmo militante

O prof. Paulo Margutti, titular de filosofia da UFMG, concedeu uma entrevista à Revista Eletrônica IHU Online (Instituto Humanitas Unisinos) sobre o crescimento do neo-ateísmo contemporâneo. Posteriormente me posicionarei em relação aos questionamentos do eminente colega da UFMG.
Ao contrário de algumas infelizes tendências céticas contemporâneas, eu considero as diferentes perspectivas em questão.


ENTREVISTA IHU 26-11-2007

Para o filósofo Paulo Margutti, docente no departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), a postura adotada pelos neo-ateístas contém, pelo menos, duas dificuldades. A primeira é que, “apesar da boa intenção de combater o fundamentalismo em todas as suas formas, eles acabam confundindo fanatismo religioso com religião”. A segunda dificuldade é que essa postura coloca seus defensores ironicamente numa “posição de ‘apóstolos’ da racionalidade contra a barbárie da religiosidade – e, convenhamos, isso pode estimular em algumas mentes despreparadas um novo tipo de intolerância fundamentalista contra todas as formas de religiosidade, em franca contradição com os ideais iluministas que inspiram essa mesma postura”. Margutti pondera que, mesmo assim, os neo-ateístas não podem se acusados de fundamentalistas. “Eles simplesmente estão expressando com clareza as suas opiniões, tomando posição num debate importante e forçando as pessoas a reavaliarem suas convicções”. Os subtítulos são nossos.

Margutti graduou-se em Filosofia, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Ciências do Homem e Fenomenologia, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), e mestre em Filosofia Contemporânea, pela UFMG. Cursou doutorado em Filosofia na Universidade de Edinburgo, Escócia, com a tese Wittgenstein and semantic presuppositions generated by definite descriptions in subject-position. É autor de Iniciação ao silêncio (Análise do Tractatus de Wittgenstein) (São Paulo: Loyola, 1998) e Introdução à lógica simbólica (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001). No livro Dialética e auto-organização (São Leopoldo: Unisinos, 2003), escreveu o capítulo “Dialética, lógica formal e abordagem sistêmica”, em que discute as idéias de Cirne Lima. Margutti já concedeu duas entrevistas à IHU On-Line: uma na edição nº 83, de 10-11- 2003, intitulada “Os rumos da Filosofia no Brasil”, e outra na edição 143, de 30-05-2005, sob o título “Dialética para entender a cultura”, por ocasião de sua vinda para o Congresso Dia/2005, na Unisinos, falando sobre Dialética e tempo. A entrevista a seguir foi concedida por e-mail. Confira.

Entrevista com Paulo Margutti: Novos ateístas. Apóstolos da racionalidade contra a barbárie?

IHU On-Line - O cardeal Carlo Maria Martini afirmou, em artigo publicado no Corriere de la Serra, que “existe em nós um ateu potencial que grita e sussurra a cada dia suas dificuldades em crer”. Como podemos compreender essa afirmação frente à situação de retorno do sagrado que se experimenta atualmente? Paira uma “tentação” pelo ateísmo em nossos dias?
Paulo Margutti - Penso que a afirmação do Cardeal Martini se refere ao fato de que cada um de nós vive um conflito que constitui o cerne da própria condição humana. Por um lado, temos uma forte tendência a buscar misticamente um contato com uma realidade superior, capaz de libertar-nos, ainda que provisoriamente, das contingências e misérias deste mundo. Essa tendência é oposta àquela descrita pelo Cardeal Martini e poderia ser formulada assim: “existe em nós um crente potencial que grita e sussurra a cada dia suas dificuldades em não crer”. As pessoas inspiradas por essa tendência costumam desprezar a vida neste mundo, pois estão buscando alguma coisa que se encontra para além dele. Em virtude disso, criticam aqueles que se prendem ao mundo, por acharem que estão no caminho errado para encontrar o sentido da vida. Por outro lado, temos também uma forte tendência a rejeitar racionalmente a busca desse contato místico, reconhecendo e aceitando as contingências e misérias deste mundo. As pessoas inspiradas por essa tendência costumam valorizar a vida neste mundo, pois estão buscando alguma coisa que se encontra nele mesmo. É o que os neo-ateístas têm feito. Mas a verdade é que o ser humano existencialmente inquieto vive basculando entre essas duas tendências. Por vezes, ele se entrega completamente ao sentimento religioso. Outras vezes, ele rejeita tais sentimentos, principalmente em nome da razão científica. Em minha opinião, a condição humana é tal que não se trata de escolher qual dessas tendências é a correta. Elas são irredutíveis e complementares em nossas vidas.

No atual contexto, o Cardeal Martini parece estar expressando sua preocupação com a mais recente manifestação da “tentação” pelo ateísmo, representada por autores como Dawkins , Dennett e Onfray. Mas convém lembrar que os ataques desses autores à religião podem muito bem estar expressando a preocupação deles com o retorno ao sagrado, uma das características marcantes de nossa época O que estamos observando é a novidade de um debate público entre as duas tendências que caracterizam a condição humana.

IHU On-Line - Qual é o seu ponto de vista sobre a tentativa de se combater o fundamentalismo religioso através do fundamentalismo ateísta, como têm feito Dawkins, Dennet, Onfray e Harris? Que inconsistências essa proposta apresenta?
Paulo Margutti - Como, atualmente, o avanço da religião parece ser muito mais expressivo do que a sua rejeição pelos partidários da atitude científica, isso constitui um forte motivo de preocupação para esses últimos. Nessa perspectiva, eles parecem estar vendo a si próprios como defensores da razão iluminista contra o obscurantismo e o fanatismo dos tempos atuais. Mas a postura adotada pelos neo-ateístas envolve pelo menos duas dificuldades. Em primeiro lugar, apesar da boa intenção de combater o fundamentalismo em todas as suas formas, eles acabam confundindo fanatismo religioso com religião. O fanatismo religioso é um problema grave que todas as épocas históricas tiveram de enfrentar. Muita incompreensão e violência resultaram dele. Mas ele não se identifica com a religião ou com a religiosidade, entendida como a experiência íntima de contato com uma realidade superior. Essa experiência foi a marca característica de muitos gênios que contribuíram de um modo ou de outro para o melhor conhecimento de nós mesmos enquanto seres humanos. De um modo geral, todos ou quase todos eles tiveram suas criações originais influenciadas ou baseadas em alguma vivência religiosa. Os neo-ateístas não parecem estar levando em conta esse fato de maneira adequada. Dawkins, por exemplo, reconhece a existência de um tipo de religião decente e contido, mas alega que ele é numericamente irrelevante, diante do fanatismo dominante. Ora, essa alegação, além de controversa, permite a confusão que acabo de denunciar. Em segundo lugar, a postura dos neo-ateístas os coloca ironicamente numa posição de “apóstolos” da racionalidade contra a barbárie da religiosidade – e, convenhamos, isso pode estimular em algumas mentes despreparadas um novo tipo de intolerância fundamentalista contra todas as formas de religiosidade, em franca contradição com os ideais iluministas que inspiram essa mesma postura. Mesmo assim, não me parece que os neo-ateístas mencionados possam ser acusados de fundamentalistas. Eles simplesmente estão expressando com clareza as suas opiniões, tomando posição num debate importante e forçando as pessoas a reavaliarem suas convicções. Isso é um bom sinal, pois, por muito tempo na história da humanidade, os ateus tiveram de se manter calados. E agora estão se sentindo à vontade para expressar suas opiniões sem receio de punição. Enquanto nos mantivermos no plano da discussão intelectual esclarecida, teremos todos a oportunidade de nos beneficiar.

IHU On-Line - Que tipo de ética é necessária e possível numa sociedade dividida entre dois fundamentalismos?
Paulo Margutti - Uma ética da tolerância e da compreensão, que se realiza através do diálogo democrático e aberto. Autores como Apel , Habermas e Rorty já defenderam alguma coisa nessa linha, em que pesem as diferenças entre eles. De todos, Rorty me parece o mais sensato e aberto, pois não constrange o diálogo com condições transcendentais, como faz Apel, nem universais, como faz Habermas. Essas condições tendem a enclausurar o diálogo numa camisa de força, dificultando enormemente a solução dos problemas. Rorty simplesmente aponta para o fato de que vivemos num mundo contingente e precário, em que somos constantemente levados a reavaliar nossas crenças em função das mudanças de circunstâncias. E sugere que façamos essa reavaliação através de uma conversação democrática e sem coerções, mantendo sempre em mente a precariedade e a contingência. Sei que Rorty não era uma pessoa religiosa e que não se interessava pela religião, mas sei também que ele não se oporia em princípio a discutir a questão da religiosidade no mesmo clima de conversação aberta antes mencionado e que estaria genuinamente disposto a ouvir as pessoas religiosas. E essa certamente seria uma das maneiras de levar as pessoas a perceberem, por exemplo, no conflito entre árabes e judeus, que se chegou a uma situação em que todos perdem, enquanto continuarem agindo como estão. E isso talvez nos fornecesse alguma pista prática para resolver o mais importante conflito contemporâneo, que não é aquele entre os fanáticos religiosos e os ateus iluministas, mas aquele entre o fundamentalismo islâmico terrorista e o fundamentalismo americano belicista. O primeiro encontra no fanatismo religioso suicida a única resposta à humilhação que sofre sistematicamente da civilização ocidental, representada pelos Estados Unidos da América. O segundo encontra na guerra preventiva e unilateral, sem apoio da ONU, a única resposta aos atentados que vem sofrendo. E a verdade é que não há diálogo. Ninguém se preocupa em compreender o que está se passando com o adversário, para tentar uma mudança significativa de estratégia. Nesse contexto, o risco que correm os neo-ateístas é o de terem suas críticas ao fundamentalismo religioso apropriadas pelo fundamentalismo americano belicista, que já se arvora em defensor da racionalidade ocidental contra o fanatismo islâmico e não teria escrúpulos em aproveitar-se desse reforço ideológico

IHU On-Line - Para Michel Onfray, a “fé tranqüiliza” e a “razão preocupa”, do que se infere que o cristão é um ser infantilizado. Essa idéia, que remonta a Freud , fundamenta-se, também, na disjunção entre fé e razão? Por que tantos pensadores continuam a afirmar que ambos os campos não podem ser conciliados?
Paulo Margutti - Antes de responder a essa questão, gostaria de lembrar que os apóstolos do ateísmo iluminado não estão dando a devida atenção aos autores que teriam efetivamente alguma coisa de importante a dizer a respeito da religião. Eles simplesmente chegaram à conclusão de que a religião é uma forma de fanatismo irracional e se fecharam a qualquer possibilidade de discutir o assunto de maneira mais aberta. Nessa perspectiva, o livro de Dawkins, Deus, um delírio, é paradigmático. A bibliografia ali apresentada por ele é – paradoxalmente para a sua auto-imagem de pesquisador esclarecido e aberto – voltada predominantemente para os defensores da mesma posição que o autor. Os verdadeiros adversários não são sequer considerados. Falta um Agostinho , um Kant , Dostoiévski , um Tolstoi , um Schopenhauer , um William James , um Wittgenstein , só para citar alguns exemplos. É verdade que Dawkins chega a mencionar alguns desses autores, como Kant, Dostoiévski e Wittgenstein. Mas Dawkins só está interessado no Kant iluminista e não leva em conta as posições de Dostoiévski e Wittgenstein no que diz respeito à religiosidade. Aliás, tudo indica que Dawkins não leu As variedades da experiência religiosa, de William James. Nesse livro, o autor, que não era uma pessoa religiosa, argumenta que a religião e a explicação racional pertencem a domínios completamente diferentes. A religião envolve uma experiência de contato com uma realidade superior. Essa experiência ocorre “fora” dos padrões normais de percepção, caracterizando-se pela inefabilidade e transitoriedade. Mesmo assim, ela possui um valor cognitivo inegável, que traz consigo uma convicção profunda e altera radicalmente as nossas vidas. Esse tipo de experiência constitui um fenômeno antropológico importante e não pode ser adequadamente avaliada através de nossa dimensão racional. Para James, um dos maiores equívocos seria tentar justificar ou criticar racionalmente a experiência religiosa. Não se demonstra ou refuta a existência de Deus, mas se vivencia misticamente o contato com Ele. Nessa perspectiva, a fé não tranqüiliza, mas preocupa mais do que a razão.

Inquietude existencial
O sentimento de culpa experimentado pelo crente que não está conseguindo o almejado contato com Deus é dos mais terríveis. Pascal pode ser citado aqui como um exemplo de inquietude existencial num homem de fé Quanto à questão da justificação racional, é certo que o místico não tem como satisfazer às exigências científicas do ateu iluminista, que, em virtude disso, o considera irracional e infantilizado. Mas também é certo que o ateu iluminista também não tem como explicar racionalmente a existência e a persistência dessa experiência e da convicção que dela decorre na história do gênero humano. Por exemplo, as tentativas de Dawkins no sentido de explicar o fenômeno religioso através da evolução são apenas esboços incompletos e não tocam o ponto principal: a experiência mística que a caracteriza. Como se pode ver, não se trata de “provar” para um ateu que Deus existe ou de “refutar” uma prova da existência de Deus para um crente: a experiência religiosa é algo intensamente vivido e não se dá no domínio da pura racionalidade. Com base nisso, Wittgenstein, um dos seguidores de James nessa perspectiva, chegou a dizer que expressões como crer em Deus e não crer em Deus não são contraditórias. Com efeito, uma pessoa que crê em Deus se encontra num plano tão diferente de uma pessoa que não crê em Deus que as duas não estão efetivamente se comunicando numa dimensão estritamente lógica. Nessa mesma linha de raciocínio, Wittgenstein afirmou no Tractatus que, se todos os problemas científicos fossem resolvidos, a questão do sentido da vida não seria sequer tocada. Antes de Wittgenstein, o físico Boltzmann manifestou a mesma opinião. Freud, que Onfray elogiosamente considera um dos grandes críticos da religião, reconhece a existência do sentimento religioso e lhe atribui caráter “oceânico”. Mesmo assim, Freud o reduz a uma espécie de neurose, num viés semelhante ao de Dawkins, que o reduz a uma “ilusão”. Não nos esqueçamos, porém, de que foi essa “neurose” ou essa “ilusão” a principal responsável por inúmeros avanços no conhecimento que temos de nós mesmos e do mundo, através dos trabalhos de gênios. Quase todos partem de uma intuição originária, de caráter místico, para levarem adiante as suas criações originais. Não é de admirar que Dawkins, em seu livro, gaste dois longos capítulos para discutir racionalmente a questão da existência de Deus. Num deles, Dawkins refuta os argumentos tradicionais a favor da existência de Deus; no outro, ele oferece os motivos pelos quais, quase com certeza, Deus não existe. Como se pode ver, Dawkins não parece saber do que está falando. O mesmo parece valer para Onfray e Dennett. Eu recomendaria a todos eles a leitura dos autores acima mencionados, principalmente de William James. Isso deixaria claro o porquê da insistência de muitos pensadores, entre os quais me incluo, em manter separados os domínios da fé e da razão.

IHU On-Line - John F. Haught compatibiliza a Teoria da Evolução com o desígnio inteligente. A filosofia de Wittgenstein, sobretudo a do segundo período, possibilita aproximar fé e ciência? Como? Ou a fé é uma experiência do incomensurável, e não pode ser compreendida por palavras?
Paulo Margutti - Já fiz algumas considerações a esse respeito na resposta à questão anterior. No Tractatus, Wittgenstein separa explicitamente a fé e a ciência, em virtude da influência não só de William James, mas também de Schopenhauer, Weininger, Mauthner, Boltzmann e Tolstoi. Na primeira filosofia de Wittgenstein, a linguagem só pode descrever os fatos do mundo, ou seja, fazer ciência, enquanto a experiência religiosa fica reduzida à contemplação silenciosa. É conhecida a sua afirmação no final da obra: “sobre o que não se pode falar, deve-se calar”. Alguns intérpretes de Wittgenstein pensam que, na elaboração de sua segunda filosofia, ele admite a possibilidade de jogos de linguagem religiosos e isso retiraria a experiência religiosa da dimensão do silêncio. Em minhas pesquisas a respeito desse autor, porém, cheguei à conclusão contrária. Durante toda a sua vida, Wittgenstein foi uma pessoa profundamente religiosa, que buscava atormentadamente pela experiência mística e que só a concebia como algo pessoal e incomunicável. A filosofia das Investigações altera a concepção wittgensteiniana de linguagem, é verdade, mas mantém a perspectiva ético-religiosa do Tractatus. A influência de William James foi uma constante na vida de Wittgenstein. Em conseqüência, ele nunca tentou conciliar fé e razão, porque as considerava pertencentes a domínios complementares. Parece-me que ele tem razão nesse aspecto. Não há necessidade de conciliar a fé e a ciência. Cada uma se aplica a um domínio específico, que não interfere no outro. A mecânica quântica constatou que, paradoxalmente, um elétron se comporta, por vezes, como onda, e, por vezes, como partícula. E essa aparente contradição não impediu a física de avançar: apenas deixou claro que a realidade é muito mais complexa do que nossas categorias racionais são capazes de explicar. Talvez pudéssemos fazer uma analogia aqui, no que diz respeito aos poderes cognitivos do ser humano. Paradoxalmente, ele pode conhecer não só de maneira inefavelmente intuitiva, como acontece com os místicos, mas também de maneira racionalmente discursiva, como acontece com os cientistas. Essa aparente contradição não nos impediu de avançar até hoje: apenas mostrou que somos muito mais complexos do que a maneira pela qual os neo-ateístas iluministas querem nos retratar. Possuímos dimensões profundas que escapam ao domínio da racionalidade estrita. A complementaridade dialética das faculdades cognitivas mencionadas, irredutíveis e sem síntese aparente, parece ser a nossa marca registrada.

IHU On-Line - Deus como ficção útil é outro argumento recorrente dos ateístas contra a religião. Caso Deus fosse mesmo uma ficção e usado em nome de uma melhor convivência humana, não seria melhor mantê-lo do que descambar no niilismo total? Se isso acontecesse, não estaríamos caminhando para um cristianismo sem Deus?
Paulo Margutti - Com base nas considerações feitas até agora, espero ter deixado claro que a idéia de Deus como ficção útil só poderia ser formulada por uma pessoa que nunca teve a experiência religiosa. Reitero aqui que essa pessoa não sabe bem do que está falando. Desse modo, a sugestão de que, mesmo como ficção útil, Deus poderia ser utilizado em nome de uma melhor convivência humana, sem cair no niilismo total, constitui um falso problema. O mesmo ocorre com a discussão a respeito do ateísmo cristão ou cristianismo sem Deus, que Onfray considera uma das características do mundo atual que deve ser superada por um autêntico ateísmo ateu, pós-moderno. Pode ser que haja pensadores que não mais acreditem em Deus e permaneçam fiéis à moral cristã. Mas se não há Deus, não há mais cristianismo em sentido estrito. Além disso, a presença de tais pensadores na cultura contemporânea não me parece tão significativa a ponto de merecer uma denominação e um estudo especial. Não há espaço para discutir isso aqui, mas a afirmação de Onfray de que o cristianismo sem Deus é uma fase a ser superada em direção ao continente pós-cristão me parece extremamente controversa. Há evidências bastante fortes em sentido contrário, ou seja, de que nos dias de hoje o sentimento religioso tem-se fortalecido enormemente. O livro de Onfray poderia ser inclusive explicado como tendo surgido a partir do temor diante desse fato e da identificação inadequada que ele faz entre esse sentimento e o puro fanatismo.

IHU On-Line - Onfray acredita que rumamos para um continente pós-cristão. Você concorda? Essa é uma conseqüência natural da pós-modernidade?
Paulo Margutti - Já comentei algo a esse respeito na resposta anterior. Gostaria de acrescentar aqui que fiquei admirado ao verificar que, em seu livro, Onfray também faz uma filosofia da história que nada fica devendo às especulações fantasiosas do passado. Para ele, a cultura contemporânea está marcada por uma clara oposição entre os monoteísmos de ontem e o ateísmo de amanhã. Ele pensa que essa oposição se dá entre Moisés, Jesus, Maomé e suas religiões do Livro contra Holbach , Feuerbach, Nietzsche e suas fórmulas filosóficas de desconstrução radical de mitos e ficções. Ora, uma análise minimamente realista da situação revela justamente o contrário: a cada dia que passa, mais e mais fiéis se acumulam nas igrejas, em busca do consolo da religião, sob os olhares preocupados de defensores das Luzes, como Onfray. Essa sim, parece ser uma das conseqüências da pós-modernidade. É verdade que muitos desses fiéis irão se desencaminhar pelos meandros do fanatismo religioso – e isso constitui motivo de preocupação para todos nós. Mas também é verdade que muitos desses fiéis serão capazes de vivenciar uma autêntica experiência religiosa, que os tornará pessoas melhores e mais capazes de conviver com seus semelhantes. Minha hipótese é que a previsão de Onfray está na contramão da história. Mas o tempo dirá quem tem razão.

IHU On-Line - Esse mesmo autor subverte a afirmação de Ivan Karamázov dizendo que, “porque Deus existe, então tudo é permitido”, como forma de justificar os excessos cometidos em nome da religião. Pensando na situação das religiões atualmente, que aspectos válidos e reducionistas se encontram nessa idéia?
Paulo Margutti - Onfray subverteu a afirmação de Ivan Karamázov porque não entendeu Dostoiévski, um autor profundamente religioso. A fórmula de Onfray é apenas mais uma comprovação de que ele confunde religiosidade com fanatismo religioso e ataca o que, no fundo, desconhece. Isso é uma posição reducionista que deve ser evitada. Dawkins também discute o dito de Ivan Karamázov e pensa que ele significa simplesmente o seguinte: a pessoa que o admite pensa que o único motivo para tentar ser bom é obter a aprovação e recompensa de Deus e evitar sua reprovação e punição. E isso só revelaria a mesquinharia dessa pessoa. Ora, essa interpretação também é equivocada: não é esse o sentido religioso profundo da colocação dostoievskiana. O que ela quer dizer é que só aquele que já sente misticamente em si a presença de Deus é que tem condições de sentir-se eticamente responsável. A interação entre a vontade própria e a vontade divina só tem condições de surgir efetivamente para aquele que experiencia de algum modo a vontade divina. Aquele que não sente misticamente em si a presença de Deus e quer explicar tudo racionalmente, como acontece com Onfray e Dawkins, não tem condições de compreender a responsabilidade ética vivida pelo crente e tenderá a explicá-la com base no interesse mesquinho. Como se pode ver, Onfray e Dawkins estão se posicionando num plano cognitivo inadequado para fazer a discussão a respeito do dito de Ivan Karamázov.

De qualquer modo, há algo válido nas colocações de Onfray, principalmente em sua denúncia enfática a todas as formas de fanatismo religioso que assolam o mundo contemporâneo. Porém, ao levantar a bandeira das Luzes contra a religião em todas as suas formas e recorrendo aos irracionalistas Nietzsche e Freud como mentores intelectuais, Onfray parece estar navegando em águas perigosas, bem pouco iluministas. E, do mesmo modo que ele “psicanalisa” o sentimento religioso, reduzindo-o à pulsão de morte, sua própria posição poderia ser também “psicanalisada” e reduzida, quem sabe, à “pulsão de vida”. Dawkins parece ser mais comedido do que Onfray, pois se compromete com Darwin e não com Nietzsche e Freud. Todavia, como já indiquei, sua explicação evolucionista da religião – como sendo uma característica que não tem valor de sobrevivência por si só e sim como subproduto de outra característica que o tenha – é incompleta e não toca o elemento principal que a constitui: a experiência mística.

Uma coisa, porém, é certa: o debate está lançado no domínio público da conversação da humanidade e o que temos a fazer é tentar extrair o melhor dessa situação, sem acusações desnecessárias de fundamentalismo e com abertura de espírito suficiente para que a discussão possa ser levada a bom termo. Nada como uma atitude sadia de diálogo crítico, em que as partes envolvidas possam apresentar, sem coerções, suas opiniões a respeito de um tema tão importante como esse para o conhecimento de nós mesmos.