quarta-feira, 30 de abril de 2008

Dicas do prof. Sérgio Nogueira

Falsos sinônimos

Vejamos, a seguir, uma série de palavras que devemos usar no seu real significado:

ACATAR – Significa “obedecer”: “Ele acatou as ordens do juiz”. Não é sinônimo de acolher: “O juiz da décima Vara Federal de Brasília, Marcus Vinícius Reis Bastos, acolheu (e não acatou) a denúncia do Ministério Público Federal contra os três”.

ADMITIR – Significa “reconhecer”. Apresenta carga negativa. É incoerente admitir uma “coisa positiva”: “Ele admitiu que está fazendo o maior sucesso” (= só seria possível se ele tivesse negado anteriormente). Em vez de “ele admitiu que errou”, é melhor “ele reconheceu o seu erro”; em vez de “ele admitiu que matou nove crianças”, é melhor “ele confessou que matou nove crianças”. Pode, também, provocar ambigüidade: “Igreja admite estupro de freiras por religiosos” (reconhece que houve ou permite que haja?). Por tudo isso, é bom tomar muito cuidado com o uso do verbo admitir.

ALTO – O preço é alto, mas o produto é caro: “O preço dos automóveis está muito alto”; “Este automóvel está muito caro”.

AO CONTRÁRIO DE – Só se forem “coisas opostas”. Se não forem “coisas opostas”, devemos dizer diferentemente: “Diferentemente do que publicamos ontem, Romário já fez 250 gols com a camisa do Vasco, e não 249.” Exemplo inaceitável: “Ao contrário do que foi dito, ele venceu oito e não sete corridas (= não são “coisas” opostas).

AO ENCONTRO DE – Significa “a favor”: “Ficamos felizes, porque as suas idéias vêm ao encontro das nossas necessidades”; “Qualidade é ir ao encontro das expectativas do cliente”.

AO INVÉS DE – Significa “ao contrário de”. Só pode ser usado se houver troca “por coisa oposta”: “Ele entrou à direita ao invés de entrar à esquerda”; “Subiu ao invés de descer”. Em caso de dúvida (= se a coisa é oposta ou não), use em vez de.

APARIÇÃO – Use somente em situações específicas (= algo repentino e surpreendente): “aparição de fantasmas, de discos voadores…” Em geral, use aparecimento: “Ficamos esperando pelo aparecimento da testemunha”.

ARBITRAGEM – É o “ato de arbitrar”. É bom não usar em lugar de árbitro: “A arbitragem não deu o pênalti.” Devemos dizer que “o árbitro não deu o pênalti”.

ARRUINADO – Significa “empobrecido, quem perdeu tudo”: “O rico empresário ficou arruinado”. Não devemos usar no sentido de “ficar em ruínas”: “O aeroporto ficou totalmente destruído (e não arruinado)”.

BAIXO/ BARATO – O preço é baixo, mas o produto é barato: “O preço dos automóveis está muito baixo”; “Este automóvel está muito barato”.

BASTANTE – É “o que basta”. Significa “suficiente”: “Ele já tem provas bastantes ( = suficientes) para incriminá-la”. É bom evitar o uso da palavra bastante como advérbio de intensidade (= muito, suficientemente): “A moradora ficou muito (e não bastante) preocupada”. Pode provocar ambigüidade: “Ele comeu bastante” (muito ou suficiente?).

BIMENSAL/BIMESTRAL – Bimensal é “duas vezes por mês”; bimestral é “de dois em dois meses”.

CARIOCA – Refere-se à cidade do Rio de Janeiro. Portanto, o governador do Estado do Rio de Janeiro é fluminense, e não carioca. “A Federação confirmou que os dois jogos deste fim de semana pelo campeonato do Estado do Rio de Janeiro serão no Maracanã.” Devido ao uso consagrado, no caso do futebol, podemos usar “campeonato carioca”: “Flamengo é o atual campeão carioca”.

CHANCE – Use apenas no sentido positivo: “O Palmeiras tem a chance de ser campeão neste fim de semana.” Evite usar no sentido negativo: “Isso aumenta a chance de enfarte”; “A chance de ele ser condenado são enormes”. Nesses casos, prefira “risco, possibilidade ou probabilidade”.

Teste da semana

Que opção completa corretamente a frase “_________ épocas em que não ___________ levantamentos; praticamente, não ________ dados atualizados na secretaria”?

(a) Houve / se fez / havia;
(b) Houveram / se fizeram / haviam;
(c) Houve / se fez / tinha;
(d) Houveram / se fizeram / havia;
(e) Houve / se fizeram / existiam.

Resposta do teste: letra (e).

O verbo HAVER, quando se refere a tempo transcorrido, é impessoal (=sem sujeito), por isso deve concordar no singular: “Houve épocas”. Na segunda lacuna, a partícula “se” é apassivadora. O sujeito é “levantamentos”, por isso a concordância deve ser feita no plural: “não se fizeram levantamentos” (=levantamentos não foram feitos). O verbo HAVER, com o sentido de “existir” é impessoal, mas o verbo EXISTIR é pessoal. Seu sujeito é “dados atualizados”, por isso a concordância no plural: “existiam dados atualizados”.

COCA/COCAÍNA – Coca é a planta; e cocaína, a droga: “Mastigava folhas de coca”; “Era viciado em cocaína”.

COMERCIALIZAR – É mais do que simplesmente vender: “A empregada doméstica resolveu vender (e não comercializar) o carro importado que ganhou no sorteio do supermercado.” Quem comercializa um produto pode vender, comprar, trocar, alugar, financiar…

CONFISCAR – Não é sinônimo de desapropriar: “Os judeus tiveram seus bens confiscados durante a segunda grande guerra.” Se houver “indenização”, é desapropriação, e não confisco: “Para a reforma agrária, muitas terras foram desapropriadas.”

CONFLITO – Usado para designar “confusão”: “Na praça, houve um conflito generalizado”.

CONFRONTO – Só se houver “enfrentamento”: “Após o jogo, houve um confronto entre as torcidas do Flamengo e do Vasco.” Se houver apenas “confusão”, é melhor usar conflito.

CONTAMINADO – Contaminação é mais que poluição. Água com muita sujeira está poluída; com vírus, bactérias, agentes químicos… está contaminada.

DE ENCONTRO A – Significa “contra”: “O carro foi violentamente de encontro ao poste”; “A decisão do governo vai de encontro aos (= contra) anseios dos aposentados”. Não confunda com AO ENCONTRO DE, que é igual a “em apoio de”.

DEFICIENTE – É quando há “falta”: “Era um deficiente físico.”

DEFICITÁRIO – É o que sofreu déficit: “Foi uma campanha deficitária” (= deu prejuízo).

DENUNCIAR – Rigorosamente, só o Ministério Público (= um promotor) pode apresentar uma denúncia. Hoje em dia, no meio jornalístico, é aceitável o uso de denúncia como uma “revelação”: “…como foi denunciado ontem aqui no Jornal Nacional”. Devemos, entretanto, usar com cuidado e moderação. Exemplo inaceitável: “O Jornal Nacional denunciou (= mostrou) ontem a última viagem de um caminhão roubado no Paraná” (= nesse caso não há nenhuma denúncia).

DESCOLAMENTO – É o “ato de descolar, desgrudar”: “Sofreu o descolamento da retina.”

DESINFETAR – Não é sinônimo de esterilizar. Desinfetar é “limpar”; esterilizar é “tornar estéril, matar bactérias, vírus”: “É necessário desinfetar os banheiros e a cozinha”; “Todo dentista é obrigado a esterilizar seus instrumentos”.

DESLOCAMENTO – É o “ato de deslocar, mudar de lugar”: “Há a necessidade do deslocamento de todos os soldados que estão na região”.

DESPENCAR – No sentido de “cair, diminuir, descer”, só usar se houver idéia de “repentino ou queda muito grande”: “As bolsas européias despencaram (= queda muito acentuada)”; “Ele despencou para o oitavo lugar (= repentinamente ele caiu, por exemplo, do segundo para o oitavo lugar)”.

DISPARAR – No sentido de “subir ou crescer”, apresenta uma carga muito forte. É melhor usar subir ou crescer: “Ele começa a disparar (subir ou crescer) nas pesquisas de opinião” (= há subjetividade, uma carga perigosa). Deve ser evitado no sentido de “dizer”: “Ele é covarde”, disparou a atriz.

DIVISA – Usamos para estados: “Na divisa de Pernambuco com a Paraíba.”

DIZIMAR – Vem de dízimo, ou seja, a décima parte. Originariamente é a matança de um soldado em cada grupo de dez. Portanto, seria incoerente dizermos que uma raça foi “totalmente dizimada”. É melhor usar o verbo exterminar.

DUBLÊ – É um “substituto”. Não devemos usar para quem exerce “dupla função”: “O baiano Lindoberto, por exemplo, é um dublê de zagueiro e pescador”. Além de ser um lugar-comum, a palavra dublê apresenta uma clara carga depreciativa, pejorativa.

Teste

Que opção completa corretamente a frase “Os ideais _______ aspiramos são muitos, mas os recursos ___________ dispomos são ínfimos”?

(a) que / dos quais;
(b) aos quais / com que;
(c) a que / que;
(d) que / que;
(e) a que / de que.

Resposta do teste: letra (e). O verbo ASPIRAR, com o sentido de “desejar, almejar”, é transitivo indireto (aspirar a). Em razão disso, “os ideais a que (ou aos quais) aspiramos são muitos”. O verbo DISPOR também é transitivo indireto (dispor de): “…os recursos de que (ou dos quais) dispomos são ínfimos”.

EM PRINCÍPIO – Significa “em tese, teoricamente, por princípios”: “Em princípio (= por princípios religiosos), ele é contra o aborto”. Com o sentido de “inicialmente, num primeiro momento”, é melhor usar A PRINCÍPIO.

EM VEZ DE – Significa “em lugar de”. Deve ser usado para qualquer tipo de troca, de substituição: “Foi à praia em vez de ir à escola”; “Apertou o botão azul em vez do vermelho”; “Ronaldinho preferiu correr com a bola em vez de chutar”; “Imagine só tentar falar ao telefone e, em vez de uma pessoa do outro lado da linha, ouvir o sermão de uma rádio evangélica”.

EPIDEMIA/ENDEMIA/EPIZOOTIA – Epidemia - doença infecciosa de caráter transitório que atinge um grande número de pessoas numa área extensa. Endemia - doença infecciosa que ocorre habitualmente e com incidência significativa em determinada população ou região. Epidemia e endemia só devem ser usadas para seres humanos. Para animais, usamos epizootia.

ESCASSEZ – Ocorre quando “há pouco”: “As prateleiras dos supermercados quase vazias comprovam a escassez do produto.” Quando “não há”, ocorre falta: “A falta do produto é comprovada pelas prateleiras totalmente vazias”.

EVENTUAL – Significa “esporádico, ocasional, o que ocorre de vez em quando”. Uma “derrota eventual” é aquela que acontece de vez em quando. Não é sinônimo de possível nem de provável: “Oposição teme uma possível (e não eventual) derrota nas próximas eleições”; “O Barcelona é o provável (e não eventual) campeão espanhol desta temporada”.

EXPLICAR – É “esclarecer”. Não é sinônimo de justificar.

EXTORQUIR – É “arrancar, torcer para fora”. Só se pode extorquir “alguma coisa” de alguém. Uma pessoa não pode ser extorquida. A frase “A família foi extorquida pelos seqüestradores” é inaceitável. O certo é: “Os seqüestradores extorquiram dois milhões de reais da família… (= na voz ativa)” ou “Dois milhões de reais foram extorquidos pelos seqüestradores… (= na voz passiva). Só a “coisa” pode ser extorquida.

EXTRADITAR – Extradição é um acordo que há entre alguns países. Para extraditar, é preciso que haja a solicitação de outro país: “O Brasil solicitou a extradição de Cacciola.” Se não houver solicitação, pode ser expulsão: “O governo brasileiro queria expulsar o jornalista americano.” Expulsão é uma decisão unilateral.

FALÊNCIA – É mais adequado só usar para empresas. Para pessoas físicas, é melhor usar insolvência.

FAMILIAR – É preferível utilizar a palavra parente, por ser mais usual.

FATAL – É “que mata”. Portanto, não há “vítima fatal”. O acidente é que foi fatal: “Um acidente fatal com duas vítimas.”

FRONTEIRA – Usamos para países: “Na fronteira do Brasil com o Paraguai.”

GARANTIR – Só pode ser usado para quem tem o poder: “Estou vivendo o meu melhor momento”, garantiu o atacante. Não usar para quem não tem o poder de “garantir”: “Sérgio Cabral disse ou afirmou (e não garantiu) que Benedita será a candidata do PT (= não depende dele)”; “O técnico afirmou (e não garantiu) que o atacante estará totalmente recuperado até domingo”. É desnecessário “garantir o óbvio”: “O Brasil tem dimensões continentais, garantiu o presidente americano.”

GEMINADAS – Casas são geminadas, e não “germinadas”. Geminadas deriva de “gêmeo”, e germinada vem de “germe”.

GOLEADA – É o ato de golear, ou seja, vencer por uma grande diferença de gols. Segundo o senso comum, é necessário que o time vencedor tenha feito no mínimo quatro gols: “4 a 1, 4 a 0, 5 a 2…”. Não deve ser usada para designar o jogo em que houve muitos gols: “5 a 4, 7 a 5, 6 a 6”.

GREVE – Quem faz greve é empregado; patrão faz locaute.

Teste da semana

Que opção completa corretamente a frase “Fazia oposição sistemática _____ evasão do capital estrangeiro, porque supunha imprescindível ____ progresso, e mostrava-se propenso ___ aceitá-lo sem restrições”?
(a) à / ao / a;
(b) contra a / com o / em;
(c) à / com o / em;
(d) com a / no / a;
(e) da / ao / para.

Resposta do teste: letra (a). Quem faz oposição sempre faz oposição “a” alguma coisa; tudo que é imprescindível é imprescindível “a” alguma coisa; quem está propenso sempre está propenso “a” alguma coisa.

BENGALÊS/BENGALI – Bengalês é relativo a Bangladesh e Bengala (região entre a Índia e Bangladesh). Bengali é o idioma.

HINDU/INDIANO – Hindu é quem segue o hinduísmo (= religião); indiano é quem nasce na Índia ou relativo à Índia. Híndi ou Índi é o idioma mais falado na Índia.

ILEGAL – É a situação, e não a pessoa. Não existem “imigrantes ilegais”. Prefira: “Os imigrantes estão em situação ilegal.” Também não existem “filhos ilegais”.

IMPLANTAR – É “dar início”. “O sistema só foi implantado (= começou) no ano passado.” Não é sinônimo de implementar.

IMPLEMENTAR – É “pôr em prática, desenvolver, fazer funcionar”: “Todos os procedimentos já estão devidamente escritos e aprovados, mas nunca foram implementados.”

INEFICIENTE – É o “que não é eficiente”: “Foi um fracasso. Os apelos foram ineficientes.”

INÚMEROS – Significa “incontáveis”. Para grandes quantidades, porém “contáveis”, devemos usar muitos, vários ou numerosos: “Pelé fez muitos (e não inúmeros) gols com a camisa do Santos.”

INVASÃO – Só se houver violência. Se for pacífica, é melhor usar ocupação.

INSOLVÊNCIA – Deve ser usado para pessoas físicas. Só devemos usar falência para empresas.

ISRAELENSE/ISRAELITA/JUDEU – Israelense é “quem nasce ou habita em Israel” ou “relativo a Israel”: “Convidou um professor israelense para o debate”; “Houve novos ataques israelenses”. Israelita é “relativo à religião judaica ou ao povo de Israel, no sentido bíblico”: “Todos devem respeitar as tradições israelitas”; “Invadiram templos israelitas”. Judeu é “referente à Judéia”, é “aquele que segue a religião ou tradição judaica”. Não depende do seu lugar de nascimento.

JORNADA – Corresponde ao trabalho “diário”. Meia jornada é trabalhar “metade do dia”. É bom evitar “jornada semanal ou mensal“.

JUDEU – Não é necessariamente um israelense. Judeu se refere à etnia; israelense é quem nasce em Israel; israelita é o seguidor da religião e da cultura de Israel.

JUDIAR – Por sua referência ao sofrimento dos judeus, é melhor substituir por maltratar.

JUSTIFICAR – É “tornar justo, inocentar”. Não é sinônimo de explicar: “Ele explicou (e não justificou) que só aceitou o dinheiro do tráfico de drogas porque era para ajudar as crianças carentes”; “Isso explica, mas não justifica”.

LIDERANÇA – É “a qualidade do líder, o ato de liderar”: “Foi o escolhido pela sua capacidade de liderança.” É bom evitar o uso de liderança para substituir líderes: “Teve que enfrentar os líderes (e não as lideranças) dos partidos de oposição”. O uso de liderança em substituição a líder é uma forma de metonímia.

LIMITE – Use para municípios: “Aqui é onde o Rio de Janeiro faz limite com Duque de Caxias.”

LINCHAMENTO – Implica a morte da vítima. Se sobreviver, houve espancamento ou tentativa de linchamento.

LISTA/LISTADO/LISTAR/LISTAGEM – Lista pode ser uma relação ou sinônimo de listra: “Seu nome não estava na lista dos aprovados”; “Estava com uma camisa listada (ou listrada)”. Listar já pode ser usado como sinônimo de “enumerar, relacionar”. Listagem é “lista feita em computador”.

LITERAL – Significa “com as mesmas letras”. Uma transcrição literal é uma transcrição fiel ao texto original. Quando dizemos que “alguém está literalmente louco”, significa que ele está verdadeiramente louco, no sentido real da palavra. Portanto, são inaceitáveis frases do tipo: “Ele estava literalmente impedido” (= não devemos usar literalmente no sentido de “totalmente, inteiramente, completamente”); “Não foi uma bicicleta literalmente” (= não foi propriamente uma bicicleta).

Teste da semana

Que opção completa corretamente a frase “Horas após o acidente, foi _____________, na praia, uma âncora __________ pendia uma longa corda”?
(a) localizado / de que;
(b) localizada / de que;
(c) localizado / a que;
(d) localizada / a que;
(e) localizado / de quem.

Resposta do teste: letra (b). Uma âncora é que foi LOCALIZADA. A regência do verbo PENDER exige a preposição “de” (=pender de): uma longa corda pendia de uma âncora (=uma âncora DE QUE ou DA QUAL pendia uma longa corda).

MADRUGADA – É o período do dia que vai da zero hora até o amanhecer. Evite: “Transmitiremos a luta na madrugada de sábado para domingo“. O correto é: “…na madrugada de domingo”.

MAIOR/MAIS – Maior refere-se à intensidade ou tamanho: “O empresário espera maior êxito desta vez”; “Precisamos de maior ajuda”. Mais deve ser usado para palavras ou expressões que indiquem quantidade: “Precisamos de mais detalhes”; “Os dirigentes querem mais recursos”. Assim, o correto é “mais informações”, e não “maiores informações”. Em rádio e televisão, para não confundir mais notícias com más notícias, é preferível usar “outras ou novas notícias”.

MAIORES – Significa “mais grande”. Portanto, não se dá “maiores informações”, e sim outras ou novas informações. Dar “mais informações” não está errado, mas devemos evitar na linguagem falada, porque o ouvinte pode entender “más informações”. Com palavras masculinas, não há problemas: “mais detalhes”.

MEDÍOCRE – Apresenta sentido pejorativo. Um “desempenho medíocre” não é um “desempenho médio”, e sim um “desempenho ridículo, abaixo da média”.

MEMBRO – É bom evitar. Pode provocar constrangimentos: “Todos os membros se levantaram”; “Os membros da comitiva presidencial estavam muito agitados”. Melhor usar “Os integrantes da comitiva”. Podemos usar membro como adjetivo, quando vier depois de um substantivo: “estado membro, países membros“.

MESMO – Não é sinônimo de igual. Mesmo é “um só”; igual é “outro”. O “mesmo problema” do ano passado é um problema só (= o problema do ano passado ainda não foi resolvido). Um “problema igual” ao do ano passado é um outro problema, com as mesmas características. Exemplo duvidoso: “O Senado vai receber a mesma verba da Câmara dos Deputados (= uma única verba que será dividida entre as duas casas)”. Ou “O Senado vai receber uma verba igual à Câmara dos Deputados (= se forem duas verbas de mesmo valor, uma para cada casa)”.

MILITÂNCIA – É a condição de militante, é a prática, a atuação: “Isto tudo ocorreu durante sua militância no Partido Comunista.” Para designar as pessoas, devemos usar militantes: “Os militantes (e não militância) do partido invadiram o plenário.”

MINIMIZAR – Cuidado. Significa “reduzir ao mínimo”. Palavra perigosa. Apresenta certa carga pejorativa (“fazer parecer menor”): “Precisamos minimizar a crise” (diminuir ou fazer a crise parecer menor?). Evite usar: “A solução para minimizar o impacto das novas dívidas”. Prefira “…para atenuar ou diminuir o impacto das novas dívidas”.

NORMALIZAR – Significa “tornar normal”: “Agora a situação já está normalizada.” É usada também no sentido de normatizar (= criar normas): “É um instituto especializado em normalização técnica.”
Obs.: “A situação se normaliza” (e não “a situação normaliza“).

NORMATIZAR – É um neologismo já registrado em nossos dicionários. Significa “criar normas”: “Em sua empresa tudo está sendo normatizado”.

Teste da semana

Que opção completa corretamente as lacunas da frase “Entreguei a carta ___________ homem _______ que você se referiu ______ tempos”?

(a) aquele / à / à;
(b) àquele / à / há;
(c) aquele / a / a;
(d) àquele / à / à;
(e) àquele / a / há.

Resposta do teste: letra (e). Quem entrega sempre entrega alguma coisa (objeto direto = a carta) “a” alguém (objeto indireto = àquele homem). Antes do pronome relativo “que” só encontramos a preposição “a” exigida pelo verbo “referir-se”. E na expressão “há tempos”, devemos usar o verbo “haver” por tratar-se de tempo decorrido (há tempos = faz tempos).

OBSERVAÇÃO/OBSERVÂNCIA – Observação é “o ato de observar, perceber pelos sentidos”, é “o reparo, a advertência”: “O diretor fez duas observações importantes.” Observância é “o cumprimento, a execução fiel”: “Para evitar acidentes, é importante que haja a observância das normas.”

OPORTUNISTA – Cuidado. Palavra perigosa. Apresenta carga negativa: “Romário é um atleta muito oportunista.” Se ele aproveita bem as oportunidades para fazer seus gols, o melhor é dizer que “ele tem senso de oportunidade”.

ÓPTICO/ÓTICO – Óptico refere-se à visão: “Apresentava problemas no músculo óptico.” Ótico, a princípio, refere-se ao ouvido: “A labirintite afetou-lhe o nervo ótico.” Hoje em dia, porém, aceita-se o uso de ótica em referência à visão: “Comprou seus óculos numa ótica popular”; “Na sua ótica, o contrato não deveria ser assinado”; “Não passou de uma ilusão de ótica”.

PAULISTA – Refere-se ao estado de São Paulo.

PAULISTANO – Refere-se à cidade de São Paulo.

PELADA – Cuidado. Apresenta carga pejorativa. É melhor dizer que “ela estava nua” (= se houver sensualidade) ou despida (= se não houver carga de sensualidade).

PENALIZADO – É melhor só usar no sentido de “ter pena, dó, compaixão”: “Sentia-se penalizado diante de tanta miséria.” Embora já esteja registrado no novo Aurélio e no dicionário Houaiss, é bom evitar o uso de penalizado no sentido de “punido”: “O zagueiro foi punido (e não penalizado) com cartão vermelho.”

PONTO PERCENTUAL – Não devemos confundir com percentagem. Se a inflação subiu de 2% para 4%, ela subiu 100% ou dois pontos percentuais.

PORTENHO – Vem de porto. Refere-se a quem nasce ou vive em Buenos Aires. Não é sinônimo de argentino.

POSAR/POUSAR – Posar é “fazer pose”: “Ela posou para duas revistas masculinas.” Pousar é “descer, aterrissar, descansar”: “O avião pousou com vinte minutos de atraso”; “Os viajantes pousaram neste albergue”.

POSSUIR – Devemos evitar o uso de possuir como simples sinônimo de ter. Rigorosamente possuir equivale a “ter a posse de, ter a propriedade de, poder dispor de”: “Ele possui muitos bens no estrangeiro”. Em geral, é mais seguro e correto usar o verbo ter: “Ela tem duas filhas”; “Ele tem direito adquirido”; “Eles têm duas liminares”…

PROCRASTINAR – Cuidado. Na língua do dia-a-dia, apresenta carga negativa: “enrolar”. É preferível adiar ou prorrogar.

PROTOCOLAR/PROTOCOLIZAR – Segundo a tradição, protocolar é adjetivo, é “o que segue o protocolo”: “São ações protocolares.” Hoje em dia, porém, aceita-se como verbo. Seria sinônimo de protocolizar: “Os documentos foram protocolizados ou protocolados.”

Teste da semana

Que opção completa corretamente a frase “No fim do ___________, os funcionários ____________-se para conversar à ________ do prédio”?
(a) expediente / reunem / saída;
(b) expediente / reunem / saida;
(c) expediente / reúnem / saída;
(d) espediente / reúnem / saida;
(e) espediente / reunem / saída.

Resposta do teste: letra (c). A palavra “expediente” deve ser escrita sempre com “x”. Os vocábulos “reúnem” e “saída” recebem acento gráfico pela mesma razão: as vogais “i” e “u” devem receber acento agudo sempre que forem tônicas, formarem hiato com a vogal anterior e ficarem sozinhas na sílaba ou com “s”: re-ú-nem, sa-í-da.

QUESTIONAR – É “pôr em dúvida”: “O deputado questionou a legalidade do contrato.” Não é sinônimo de perguntar: “O deputado perguntou (e não questionou) se o banqueiro iria depor hoje à tarde ou somente amanhã”.

RAPTO – Não é sinônimo de seqüestro. Rapto é só de mulheres e com fins sexuais: “É hábito, nesta tribo, a mulher ser raptada pelo futuro marido”. Exemplo inaceitável: “Os dois confessaram que, na época do rapto, compraram três crianças nas mãos de Matilde” (= Embora seja freqüente, devemos evitar o uso de RAPTO para crianças).

REFUTAR – Significa “contestar, apresentar argumentos contrários”. “O mestre refutou (= contestou) as minhas idéias.” Não é sinônimo de rejeitar: “O diretor rejeitou (= não aceitou) a minha proposta”.

REGULARIZAR – O que se regulariza é a situação e não a pessoa: “A situação do atleta já foi regularizada na federação.” Devemos evitar construções do tipo: “O atleta ainda não foi regularizado na federação”; “Os camelôs não estão regularizados”.

RENDER – Palavra de carga positiva. Não devemos usar em situações negativas: “As fotos nuas lhe renderam um processo.” O mais adequado é “…custaram um processo”.

REPERCUTIR – O que repercute é a coisa: “A derrota repercutiu muito mais do que se esperava”. Devemos evitar construções em que “alguém repercute alguma coisa”: “Vamos repercutir a derrota no vestiário do Vasco.” É melhor: “Vamos ver a repercussão da derrota no vestiário do Vasco”.

RESTO – Palavra de carga negativa. Devemos evitar:
“O primeiro pode entrar, o resto deve permanecer sentado”. É melhor: “…os demais devem permanecer…”.
“São Paulo assiste a Palmeiras e Grêmio, o resto fica com o jogo Flamengo e Bahia”. É melhor: ”A rede Globo transmitirá Flamengo e Bahia; para São Paulo, Palmeiras e Grêmio”.

ROUBO – É diferente de furto. Se houver qualquer tipo de “violência”, é roubo. O cleptomaníaco tem “mania de furtar”. Se houver roubo e assassinato, é latrocínio.

SALÁRIO/VENCIMENTO – Empregado de empresa privada e funcionário público contratado com base na CLT recebem salário; funcionários públicos em geral recebem vencimento; soldo é a parte fixa dos vencimentos dos militares. Parlamentares recebem subsídio.

Teste da semana

Que opção completa corretamente a frase “O chefe pediu ___ mim e ___ colega que trabalhássemos ___ noite”?
(a) à / à / à;
(b) à / à / a;
(c) a / à / à;
(d) a / a / à;
(e) a / a / a.

Resposta do teste: letra (c). Antes de pronomes pessoais (mim, ti, si, ele, ela, nós…) não há artigo definido. Conseqüentemente não ocorre a crase. Em “pediu à colega”, temos a preposição “a” mais o artigo que define “a colega” (pediu à colega = pediu ao colega). No caso de “à noite”, temos um adjunto adverbial de tempo. Os adjuntos adverbiais femininos recebem o acento grave indicativo da crase.

terça-feira, 29 de abril de 2008

Dicionário Filosófico - acesso "on-line"

Vários professores portugueses disponibilizaram "on-line" (com acesso gratuito) o Dicionário Escolar de Filosofia de suas autorias. Muito bom. Vale a pena utilizá-lo em pesquisas sobre diversos termos filosóficos tais como: a priori, a posteriori, absoluto etc. Para acessá-lo pelo blog basta clicar no título do post.

sábado, 26 de abril de 2008

A diferença de perspectiva que faz a diferença na construção da qualidade educacional

Enquanto aqui no Brasil alguns consideram a Filosofia "inútil", como o deputado federal Sandro Mabel do PL de Goiás afirmou em 04/04/2006, ou então: "Filosofia, Psicologia, Sociologia, História, é tudo a mesma coisa", como ouvi de uma ex-colega em uma faculdade onde ensinei anteriormente, no meio acadêmico norte-americano é muito diferente. Entende-se o porquê de a qualidade no ensino brasileiro estar entre os piores índices do mundo (com líderes políticos como Sandro Mabel e educadores como minha ex-colega é difícil imaginar como não estaríamos) e a educação norte-americana estar entre os melhores índices mundiais. Sem falar nos investimentos para a área educacional cujas diferenças entre os Estados Unidos (que investe mais de 5% do PIB - em dólares - segundo relatório da OCDE) e o Brasil (que investe menos de 4% do PIB - em Reais - segundo relatório da OCDE) são enormes.


Sexta-feira, 11 de Abril de 2008
Crescimento da Filosofia nos EUA


O New York Times publicou no passado dia 6 de Abril uma reportagem sobre o crescente interesse das pessoas na licenciatura em Filosofia.
Matthew Goldstein, reitor da City University of New York, com formação em Matemática e Estatítica, afirma a este respeito: "Se começasse tudo de novo, formava-me em Filosofia. Penso que esta disciplina é o núcleo de tudo o que nós fazemos. Pode-se estudar humanidades, política ou ciências em geral, mas a filosofia é realmente a fonte da qual todas estes saberes crescem".

Barry Loewer, chefe de departamento na Rutgers, afirma que o crescimento começou quando o estudo da filosofia se foi tornando mais interdisciplinar abrangendo, por exemplo, nos anos 80 as ciências cognitivas . Recentemente, muitos alunos consideram a filosofia como constitutiva da sua "dupla-licenciatura" encarando-a como suporte para as suas profissões: psicólogos, médicos, advogados, escritores ou investidores.

Os alunos entrevistados consideram a filosofia estimulante nos dias de hoje com assuntos como a globalização ou a tecnologia no top das reflexões filosóficas. Jenna Schaal-O’Connor afirma que a filosofia tem outras vantagens adicionais: encontrou no seu curso muitos rapazes sensíveis e interessantes: "Todo o tormento da profundidade existencial" - afirma - "é uma óptima forma para arranjar namoradas".

Universidade de Rutgers:
- 100 inscritos em Filosofia este ano (mais 50 que em 2002).
- A Universidade teve em geral um descréscimo de 4% da sua população estudantil.

City University of New York:
- 322 inscritos em Filosofia (crescimento de 51% relativamente a 2002)

Número de cursos em Filosofia nos EUA:
- 817 (há uma década atrás: 765)

Universidades onde duplicou o número de inscritos em relação aos anos 90:
- Texas A&M
- Notre Dame
- University of Pittsburgh
- University of Massachusetts

Retirado do blog: http://telegrapho.blog.pt/

Como escrever um ensaio filosófico

Apresento um texto do filósofo James Pryor (Universidade de Princeton - EUA) o qual aborda a questão de como escrever um ensaio filosófico consistente, e eu diria também um ensaio acadêmico em qualquer outra área do conhecimento, embora o texto se destine à Filosofia propriamente dita. Mas em qualquer área acadêmica o uso de argumentos consistentes é a base de qualquer produção científica séria.


Filosofia

Como se escreve um ensaio de filosofia
James Pryor
Universidade de Princeton


Escrever, em filosofia, é diferente do que se pede ao estudante para redigir noutros cursos. A maior parte das estratégias descritas abaixo será útil também quando o estudante precisar de escrever ensaios noutras disciplinas, mas não se deve presumir automaticamente que o seja, nem que as orientações dadas por outros professores serão necessariamente úteis quando se escreve um ensaio de filosofia; algumas dessas orientações são rotineiramente desconsideradas na boa prosa filosófica (por exemplo, veja-se as regras de gramática, abaixo).

O QUE SE FAZ NUM ENSAIO DE FILOSOFIA?

1. Um ensaio de filosofia consiste numa defesa argumentada de uma afirmação.

Os ensaios dos estudantes devem oferecer um argumento. Não podem consistir na mera exposição das suas opiniões, nem na mera apresentação das opiniões dos filósofos discutidos. É preciso que o estudante defenda as afirmações que faz e que ofereça razões para se pensar que são verdadeiras.

Assim, o estudante não pode simplesmente dizer:

A minha opinião é que P.

Deve antes dizer algo como:

A minha opinião é que P. Penso isto porque...

ou:

Penso que as considerações seguintes... oferecem um argumento convincente em defesa de P.

Da mesma forma, o estudante não deve dizer simplesmente:

Descartes afirma que Q.

Ao invés, terá de dizer algo como o seguinte:

Descartes afirma que Q; contudo, a seguinte experiência mental mostrará que não é verdade que Q...

Ou:

Descartes afirma que Q. Julgo que esta afirmação é plausível, pelas seguintes razões...

Um ensaio de filosofia pode ter vários objectivos. Geralmente começamos por apresentar algumas teses ou argumentos para consideração do leitor, passando de seguida a fazer uma ou duas das coisas seguintes:

Criticar o argumento, ou demonstrar que certos argumentos em defesa da tese não são bons.
Defender o argumento ou tese contra uma crítica.
Oferecer razões para se acreditar na tese.
Oferecer contra-exemplos à tese.
Contrapor os pontos fortes e fracos de duas perspectivas opostas sobre a tese.
Dar exemplos que ajudem a explicar a tese, ou a torná-la mais plausível.
Argumentar que certos filósofos estão comprometidos com a tese por causa dos seus pontos de vista, apesar de não a terem explicitamente afirmado ou endossado.
Discutir que consequências a tese teria, se fosse verdadeira.
Rever a tese à luz de uma objecção qualquer.
É necessário apresentar explicitamente as razões que sustentam as nossas afirmações, independentemente de quais destes objectivos tenhamos em mente. Os estudantes geralmente sentem que não há necessidade de muita argumentação quando uma dada afirmação é para eles evidente; mas é muito fácil sobrestimar a força da nossa própria posição. Afinal de contas, já a aceitamos. O estudante deve presumir que o leitor ainda não aceita sua posição e tratar o ensaio como uma tentativa de persuadir o leitor. Por isso, não se deve começar um ensaio com pressupostos que quem não aceita a nossa posição vai com certeza rejeitar. Se queremos ter alguma hipótese de persuadir as pessoas, temos de partir de afirmações comuns, com as quais todos concordam.

2. Um bom ensaio de filosofia é modesto e defende uma pequena ideia, mas apresenta-a com clareza e objectividade, e oferece boas razões em sua defesa.

Muitas vezes, as pessoas têm demasiados objectivos num ensaio de filosofia. O resultado disto é, normalmente, um ensaio difícil de ler e repleto de afirmações pobremente explicadas e inadequadamente defendidas. Portanto, devemos evitar ser demasiado ambiciosos. Não devemos tentar chegar a conclusões extraordinárias num ensaio de 5 ou 6 páginas. Feita adequadamente, a filosofia avança em pequenos passos.

3. Originalidade

O objectivo dos ensaios escolares é demonstrar que o estudante entende o problema e é capaz de pensar criticamente sobre ele. Para que isto aconteça, o ensaio do estudante tem de revelar algum pensamento independente.

Isto não significa que o estudante tem de apresentar a sua própria teoria, ou que tenha de dar uma contribuição completamente original para o pensamento humano. Haverá muito tempo para isso no futuro. Um ensaio bem escrito é claro e directo (veja abaixo), rigoroso ao atribuir opiniões a outros filósofos (veja abaixo), e contém respostas ponderadas e críticas aos textos que lemos. Não é necessário inovar sempre.

Mas o estudante deve tentar trabalhar com os seus próprios argumentos, ou a sua maneira de elaborar, criticar ou defender algum argumento que viu nas aulas. Não basta simplesmente resumir o que os outros disseram.

TRÊS ESTÁGIOS DE REDAÇÃO

1. Primeiros Estágios

Os primeiros estágios de redacção de um ensaio de filosofia incluem tudo o que o estudante faz antes de se sentar para escrever o seu primeiro esboço. Estes primeiros estágios envolvem a escrita, mas o estudante ainda não vai escrever um ensaio completo. Pelo contrário, o estudante deve fazer anotações de leituras, rascunhos das suas ideias, tentativas para explicar o argumento principal que deseja avançar, e deve criar um esboço.

Discuta as questões com os outros

Como foi dito anteriormente, espera-se que ensaios dos estudantes demonstrem que ele entendeu o assunto que discutiu nas aulas e, mais ainda, que pode pensar criticamente sobre esse assunto. Uma das melhores maneiras de verificar a nossa compreensão da matéria das aulas é tentar explicá-la a quem não está ainda familiarizado com ela. Eu descobri repetidamente, enquanto ensinava filosofia, que não conseguia explicar adequadamente uma questão ou argumento que julgava ter entendido bem. Isto aconteceu porque o problema era mais complexo do que eu tinha percebido. O estudante terá a mesma experiência. Por isso, é bom que troque considerações com colegas e com amigos que não assistem às aulas, o que o ajudará a compreender melhor o que discutimos nas aulas e a identificar o que ainda não compreendeu inteiramente.

Será ainda mais proveitoso que os estudantes troquem considerações entre si sobre o que querem discutir nos seus ensaios. Quando as ideias do estudante estiverem suficientemente bem trabalhadas para que ele possa explicá-las oralmente, então ele estará pronto para se sentar e fazer um esboço.

Faça um esboço de trabalho

Antes de começar a escrever um rascunho, você precisa pensar sobre o que vai escrever: em que ordem deve explicar os diversos pontos a serem abordados? Em que pontos deve apresentar a posição ou argumento contrários? Em que ordem deve expor a crítica que faz aos argumentos ou posições contrárias? O que pretende discutir pressupõe outra discussão anterior? E assim por diante.

A clareza geral do seu ensaio dependerá em grande parte da sua estrutura. Por isso, é importante pensar sobre estas questões antes de começar a escrever.

Eu recomendo fortemente que, antes de começar a escrever, o estudante faça um esboço do ensaio e dos argumentos que vai apresentar, o que lhe será útil para organizar os pontos que quer abordar e para lhes dar uma direcção. Este procedimento também ajuda o estudante a assegurar-se de que pode dizer qual é seu argumento principal ou crítica, antes de se sentar para escrever um rascunho completo. Geralmente, quando os estudantes têm dificuldade em escrever, é porque ainda não compreenderam bem aquilo que estão a tentar dizer.

Dê toda a atenção ao esboço, que deve ser bem detalhado. (Para um ensaio de 5 páginas, um esboço adequado deve ter uma página inteira ou mesmo mais.)

Eu acho que fazer um esboço de trabalho representa pelo menos 80% do trabalho de escrever um ensaio de filosofia. Se faz um bom esboço, o resto do processo de escrita será muito mais tranquilo.

Comece logo a trabalhar

Os problemas filosóficos e a redacção filosófica exigem cuidado e reflexão complementares. O estudante não deve esperar até duas ou três noites antes da data de entrega para começar a escrever. Isto é tolo. Escrever um bom ensaio de filosofia exige um grande esforço de preparação.

O estudante precisa dar a si mesmo tempo suficiente para pensar sobre o tópico e escrever um esboço detalhado. Só então estará pronto para escrever um rascunho completo. Concluído o rascunho, abandone-o por um ou dois dias. Só então deve retomá-lo e reescrevê-lo várias vezes. Pelo menos 3 ou 4. Se puder, mostre-o aos seus amigos e observe as suas reacções. Eles compreendem os seus pontos principais? Há partes no seu rascunho obscuras ou confusas para eles?

Tudo isso leva tempo. Assim, o estudante deve começar a trabalhar nos seus ensaios assim que os tópicos estejam determinados.

2. Escreva um rascunho

Se o estudante já reflectiu sobre o seu argumento e criou um esquema para o ensaio, então está pronto para se sentar e escrever um rascunho completo.

Use uma linguagem simples

Não aposte na elegância literária. Use um estilo simples e directo; mantenha frases e parágrafos curtos e escolha palavras familiares. Se usar palavras rebuscadas onde as simples dariam conta do recado, os professores riem-se de si. As questões da filosofia são suficientemente profundas e difíceis sem que o estudante tenha de as enlamear com um linguagem pretensiosa ou verborreica. Não escreva num estilo que não usaria coloquialmente: se não se diz assim, não o escreva assim.

O estudante pode pensar que, uma vez que o professor de filosofia já sabe muito sobre o tema do ensaio, pode deixar de lado boa parte da explicação básica e escrever num estilo super-sofisticado, como um especialista que fala com outro. Garanto que este procedimento tornará o seu trabalho incompreensível.

Se o seu ensaio soar como se tivesse sido escrito para uma audiência da terceira classe, então provavelmente tem a clareza adequada.

Nas aulas de filosofia o estudante encontra por vezes filósofos cujo estilo é obscuro e complicado. Todos os que lêem este tipo de texto acham-no difícil e frustrante. Os autores em questão são filosoficamente importantes, apesar de a sua prosa ser má, e não por causa dela. Assim, não tente imitar esse tipo de prosa.

Torne óbvia a estrutura de seu ensaio

A estrutura do seu ensaio tem de ser óbvia para o leitor. Não obrigue o leitor a despender energias para a compreender. Ofereça as suas ideias de bandeja.

Como se pode fazer isso?

Antes de mais nada, use conectivos como os seguintes:

Porque, uma vez que, dado o argumento.
Logo, portanto, por conseguinte, segue-se que, consequentemente.
Não obstante, todavia, mas.
No primeiro caso, por outro lado.
Estes recursos ajudam o leitor a não perder a direcção da sua argumentação. Certifique-se que usa as palavras correctamente! Se disser "P. Portanto Q.", está a afirmar que P é uma boa razão para se aceitar Q. É melhor que isso seja mesmo assim. Se não for, os professores protestam. Não atire de qualquer maneira um "portanto" ou um "consequentemente" para fazer o seu pensamento parecer mais lógico do que realmente é.

Outro recurso que pode ajudá-lo a tornar óbvia a estrutura do seu trabalho é dizer ao leitor o que já fez até o momento e o que vai fazer em seguida. Pode dizer algo como o seguinte:

Começarei por...
Antes de dizer o que está errado com este argumento quero...
Estas passagens sugerem que...
Vou agora defender esta afirmação...
Esta afirmação é também apoiada por...
Por exemplo...
Estes indicadores fazem uma grande diferença. Considere os seguintes dois fragmentos de ensaios:

... Acabámos de ver como X diz que P. Vou agora apresentar dois argumentos a favor de não-P. O primeiro argumento é...
O segundo argumento a favor de não-P é...
X pode responder aos meus argumentos de várias formas. Por exemplo, poderia dizer que...
Todavia esta resposta falha, porque...
X também poderia responder a meu argumento afirmando que...
Esta resposta também falha, porque...
Assim, vimos que nenhuma das respostas aos meus argumentos a favor de não-P foi bem sucedida. Consequentemente, devemos rejeitar a afirmação de X de que P.

Vou defender a ideia de que Q.
Há três razões para se pensar que é verdade que Q. Primeiramente...
Em segundo lugar...
Em terceiro lugar...
A objecção mais forte a Q é que...
Todavia, esta objecção não é bem sucedida, pela seguinte razão...

Veja-se como é fácil reconhecer a estrutura destes ensaios. A estrutura dos ensaios dos estudantes deve ser igualmente fácil.

Uma observação final: deixe sempre muito claro quando expõe suas opiniões ou, ao contrário, quando apresenta a opinião de algum filósofo que estiver discutindo. O leitor não deve ficar em dúvida sobre a autoria das afirmações que faz em um dado parágrafo.

O estudante não conseguirá tornar óbvia a estrutura do seu ensaio se não souber que estrutura é essa, ou se o ensaio não tiver nenhuma. Por isso é tão importante fazer um esboço de trabalho.

Seja conciso, mas explique-se completamente

Para escrever um bom ensaio de filosofia, precisamos de ser concisos. Ainda assim, temos de explicar completamente os nossos pontos de vista.

Pode parecer que estas exigências nos empurram em direcções opostas (é como se a primeira dissesse "Não fale muito," e a segunda dissesse "Fale muito") mas, se as compreender adequadamente, verá que é possível atender a ambas.

Os professores insistem na concisão porque não querem ver o estudante a divagar a respeito de tudo o que conhece de um determinado tema, tentando mostrar como é inteligente e culto. Cada ensaio deve tratar de uma única questão ou problema específico. Certifique-se de que trata efectivamente desse problema em particular. O que não se referir especificamente ao problema a ser tratado não deve constar do seu ensaio. Elimine tudo o resto. É sempre melhor concentrar-se em um ou dois pontos e desenvolvê-los em profundidade do que falar de tudo. Um ou dois caminhos claros funcionam melhor que uma floresta impenetrável.
Formule, no início do artigo, o problema ou questão central que deseja tratar, e mantenha-o em mente o tempo todo. Esclareça qual é o problema, e por que razão é um problema. Certifique-se de que diz apenas o que é relevante para o tema central e de que informa ao leitor da relevância do que vai tratar. Não o obrigue a adivinhar.

O que quero dizer com "explique-se completamente" é que, quando temos um tópico para explorar, não devemos simplesmente atirá-lo numa frase. Explique-o; dê um exemplo; esclareça de que forma esse tópico ajuda o seu argumento.
Mas "explique-se completamente" também significa ser tão claro e explícito quanto possível quando estiver a escrever. Não é uma boa ideia protestar, depois de o professor ter corrigido o seu artigo, dizendo "Eu sei que disse isso, mas o que queria dizer é..." Diga exactamente o que pretende. Parte da nota que receberá terá sido em função da capacidade para dizer o que quer dizer.

Faça de conta que o leitor não leu o material que está a discutir, e que não reflectiu muito sobre ele, o que obviamente não será verdade. Mas, se o estudante escrever como se isto fosse verdade, sente-se forçado a explicar termos técnicos, ilustrar distinções estranhas ou obscuras, e ser tão claro quanto possível quando resumir o que os outros filósofos disseram.

Será bastante útil levar este primeiro passo mais além e fingir que o seu leitor é preguiçoso, tolo e maldoso. Preguiçoso, porque não quer se esforçar para descobrir o que as suas frases embrulhadas querem dizer, nem qual é seu argumento, se não não for completamente evidente. Tolo, porque terá de explicar-lhe, de forma simples e pormenorizada, tudo o que disser. Maldoso, porque não vai ser caridoso ao ler seu artigo. (Por exemplo, se disser qualquer coisa que permita mais de uma interpretação, ele vai presumir que dissemos a menos plausível.) Se o estudante compreende a matéria sobre a qual está a escrever, e se direcciona seu artigo para este tipo de leitor, provavelmente conseguirá ter uma nota muito elevada.
Use muitos exemplos e definições

É muito importante usar exemplos num ensaio de filosofia. Boa parte das afirmações que os filósofos fazem são muito abstractas e de difícil compreensão, e os exemplos são a melhor forma de as tornar mais claras.

Os exemplos são também úteis para explicar os conceitos que ocupam um papel central no argumento do estudante. Procure deixar clara a maneira como os entende, mesmo que sejam recorrentes em discursos do dia-a-dia. Tal como são usados no dia-a-dia podem não ter um significado suficientemente claro ou preciso. Por exemplo, suponha que está a escrever um ensaio sobre o aborto, e quer sustentar que "Um feto é uma pessoa." O que quer dizer com "pessoa"? O que quer dizer com "pessoa" vai determinar fortemente se esta premissa será ou não aceitável para o leitor. Também fará uma grande diferença no efeito persuasivo do seu argumento. Em si, o seguinte argumento não tem valor:

Um feto é uma pessoa.
É errado matar uma pessoa.
Logo, é errado matar um feto.

Não tem valor porque não sabemos o que o autor pretende dizer ao afirmar que um feto é uma pessoa. Segundo algumas interpretações de "pessoa", pode ser óbvio que um feto seja uma pessoa. Em contrapartida, será bastante controverso se, no mesmo sentido de "pessoa", matar for sempre algo errado. Segundo outras interpretações, é mais plausível que seja sempre errado matar pessoas, mas totalmente confuso se um feto pode ser entendido como "pessoa." Assim, tudo resulta no que o autor pretende dizer com "pessoa". O autor tem de ser explícito a respeito do uso desse conceito.

Num ensaio de filosofia, podemos dar às palavras um sentido diferente do usual, mas teremos de deixar claro que estamos a fazer isso. Por exemplo, alguns filósofos usam a palavra "pessoa" significando qualquer ser capaz de pensamento racional e auto-consciência. Entendido desta forma, animais como baleias e chimpanzés podem perfeitamente ser entendidos como "pessoas". Não é este o significado que comummente damos a esta palavra; comummente, só os seres humanos são "pessoas". Mas está muito bem usar "pessoa" neste sentido, se esclarecermos o que queremos dizer com este termo. O mesmo acontece com quaisquer outras palavras deste género que usemos nos nossos ensaios.

Não diversifique o vocabulário em benefício da variedade. Se referimos algo como "X" no começo do ensaio, temos de continuar a referir-nos a isso como "X". Por exemplo, não comece por falar sobre "a perspectiva de Platão sobre o ego", mudando para "a perspectiva de Platão sobre a alma", e depois para "a perspectiva de Platão sobre a mente". Se se refere à mesma coisa nos três casos, use só um nome. Em filosofia, uma ligeira mudança no vocabulário indica geralmente a intenção de nos referirmos a outra coisa.

Como usar palavras com significados filosóficos precisos? Os filósofos dão a muitas palavras comummente usadas significados técnicos precisos. Certifique-se de que usa essas palavras correctamente. Não use palavras que não compreende bem. Use termos filosóficos técnicos somente quando forem necessários. Não há necessidade de explicar termos filosóficos gerais como "argumento válido" e "verdade necessária". Mas deve explicar quaisquer termos técnicos cujo uso conduza ao tópico específico que está a discutir. Assim, por exemplo, se usar quaisquer termos especializados como "dualismo" ou "fisicalismo" ou "behaviorismo," deve explicar o seu significado. Proceda da mesma forma se usar termos técnicos como "sobreveniência" e outros semelhantes. Mesmo quando os filósofos profissionais escrevem para outros filósofos profissionais têm de explicar o vocabulário técnico especial que estão a usar. Pessoas diferentes às vezes usam o vocabulário especial de diferentes formas, por isso é importante ter certeza de que os nossos leitores dão a estas palavras o mesmo significado. Faça de conta que seus leitores nunca as ouviram antes.

Como apresentar e avaliar pontos de vista alheios

Se temos em mente discutir as opiniões do filósofo X, temos de começar por descobrir quais são os seus argumentos ou pressupostos centrais. Para alguma ajuda nesse sentido, vejam-se as indicações que dou em Como Ler um Texto Filosófico.

De seguida, pergunte a si mesmo: os argumentos de X são bons? Os seus pressupostos são apresentados com clareza? São plausíveis? São pontos de partida razoáveis para o argumento de X, ou ele deveria ter oferecido algum argumento independente?

Certifique-se de que entende exactamente o que a posição que está criticando diz. Os estudantes perdem muito tempo a argumentar contra opiniões que parecem indicar o que supõem estar sendo afirmado, mas na verdade dizem outra coisa. Lembre-se: a filosofia exige um alto nível de precisão. Não basta simplesmente entender a ideia geral da posição ou argumento de alguém. Temos de compreender rigorosamente o que está a ser dito. (Neste aspecto, a filosofia está mais próxima da ciência do que as outras humanidades.) Boa parte do trabalho em filosofia consiste em certificarmo-nos de que compreendemos bem a posição de quem discordamos.

Podemos presumir que o nosso leitor é tolo (veja-se acima), mas não devemos tratar o filósofo ou as posições que estamos a discutir como tolas. Se o fossem, não estaríamos a discuti-las. Se não conseguimos ver nenhuma plausibilidade na posição que estamos a refutar, talvez não tenhamos muita experiência em pensar e argumentar sobre ela e ainda não compreendemos inteiramente por que motivos os seus proponentes a defendem. Procure esforçar-se um pouco mais para descobrir o que os motiva.

Os filósofos às vezes dizem coisas perturbadoras, mas se a opinião que você está atribuindo a um filósofo parece obviamente louca, então deve reflectir melhor e descobrir se ele realmente diz o que você acha que diz. Use a imaginação. Tente descobrir que opinião razoável o filósofo poderia ter tido em mente, e dirija seus argumentos contra ela.

Nos nossos ensaios temos sempre de explicar qual é a perspectiva X que queremos criticar, antes de fazê-lo. Se não o fizermos, o leitor não poderá julgar se a crítica que oferecemos a X é boa, ou se apenas se baseia em uma má interpretação ou má compreensão do ponto de vista de X. Assim, diga ao leitor o que acha que X afirma.

Contudo, não tente dizer ao leitor tudo que sabe sobre o ponto de vista de X. O estudante também tem de ter espaço para oferecer sua própria contribuição filosófica. Resuma apenas aquelas partes da posição de X que são relevantes para o que pretende fazer.

Às vezes precisamos de argumentar em defesa das nossas interpretações do que X diz, citando passagens que a confirmem. E é aceitável que queiramos discutir uma opinião que julgamos ser de um filósofo, ou que poderia ter sido, apesar de nos textos desse filósofo não haver nenhuma indicação directa desse ponto de vista. Quando fizermos isto, todavia, devemos explicitamente dizer que o fazemos. Diga algo como:

O filósofo X não afirma explicitamente que P, mas parece que o presume porque...

Citações

Quando uma passagem de um texto for particularmente útil para apoiar a sua interpretação do ponto de vista de algum filósofo, pode ajudar se citar directamente a passagem. (Especifique de onde retirou a passagem.) Todavia, as citações directas devem ser usadas com parcimónia. Raramente é necessário citar mais do que umas poucas frases. Frequentemente será mais apropriado parafrasear o que X diz, do que citá-lo directamente. Quando parafraseamos o que outra pessoa disse, temos de nos certificar que é claro que estamos a fazer isso (e também neste caso temos de citar as páginas onde se encontram as passagens que estamos a parafrasear).

As citações nunca devem ser usadas com um substituto da nossa própria explicação. Quando citamos um autor, temos de explicar o que a citação diz com as nossas próprias palavras. Se a passagem citada contém um argumento, temos de o reconstruir em termos mais explícitos e directos. Se a passagem citada contém uma afirmação ou pressuposto principal, temos de indicar qual é. Pode ser que queiramos usar exemplos para ilustrar a posição do autor. Por vezes, é necessário distinguir a opinião do autor de outras com as quais pode ser confundida.

Paráfrases

Às vezes, quando os estudantes tentam explicar o ponto de vista de um filósofo, fazem-no através de paráfrases muito próximas às próprias palavras do filósofo. Mudam algumas palavras, omitem outras, mas geralmente ficam muito próximos do texto original. Por exemplo, Hume começa o seu Tratado Sobre o Entendimento Humano da seguinte forma:

Todas as percepções da mente humana se dividem em dois tipos distintos, a que irei chamar impressões e ideias. A diferença entre eles consiste no grau de força e vivacidade com que afectam a mente e entram no nosso pensamento ou consciência. Àquelas percepções que entram com mais força e violência podemos chamar impressões; e sob este nome eu abranjo todas as nossas sensações, paixões e emoções, tal como primeiro surgem na alma. Por ideias entendo as imagens mais fracas destas impressões no pensamento e no raciocínio.

Aqui está um exemplo de como não se deve parafrasear:

Hume diz que todas as percepções da mente se dividem em dois tipos: impressões e ideias. A diferença está na intensidade da força ou vivacidade que têm nos nossos pensamentos e na nossa consciência. As percepções com maior força e violência são impressões: são as sensações, paixões e emoções. As ideias são imagens fracas de nosso pensamento e raciocínio.

Há dois problemas principais com paráfrases deste tipo. Em primeiro lugar, são feitas mecanicamente. Não demonstram que o autor compreendeu o texto. Em segundo lugar, uma vez que o autor ainda não compreendeu bem o que o texto quer dizer de modo a expressá-lo pelas suas próprias palavras, há o risco de inadvertidamente alterar o significado original do texto. No exemplo acima, Hume diz que as impressões "afectam a mente" com mais força e vivacidade do que as ideias. Mas a paráfrase diz que as impressões têm mais força e vivacidade "nos nossos pensamentos". Não é óbvio que isto seja a mesma coisa. Além disso, Hume diz que as ideias são imagens fracas das impressões; mas a paráfrase diz que as ideias são imagens fracas do nosso pensamento, o que não é a mesma coisa. Assim, o autor da paráfrase parece não ter compreendido o que Hume diz.

Um modo muito melhor de explicar o que Hume diz aqui seria o seguinte:

Hume afirma que há dois tipos de "percepções" ou estados mentais, a que chama impressões e ideias. Uma impressão é um estado mental muito "forte", como a impressão sensorial que alguém tem ao olhar uma maçã vermelha. Uma ideia é um estado mental menos "forte", como a ideia que se tem de uma maçã quando pensamos sobre ela sem a ver. Não é claro o que Hume quer dizer com "forte". Pode querer dizer que...

Antecipe objecções

Tente antecipar objecções ao seu ponto de vista e responda-lhes. Por exemplo, se você objectar contra a opinião de algum filósofo, não presuma que ele admitiria imediatamente que estava enganado. Imagine qual poderá ser a contra-objecção desse filósofo. E como poderá responder a essa contra-objecção?

Não tenha receio de mencionar objecções à sua própria tese. É melhor que nós mesmos apresentemos objecções do que pressupor que o leitor não vai pensar nelas. Explique como acha que estas objecções podem ser contraditas ou superadas. Certamente não é possível, com frequência, responder a todas as objecções que se possa levantar. Assim, concentre-se naquelas que parecem mais fortes ou mais importantes.

O que acontece se ficarmos encravados?

Os nossos ensaios nem sempre têm de dar uma solução definitiva para um problema, ou uma resposta directa, do tipo sim ou não, para o problema levantado. Muitos ensaios excelentes de filosofia não oferecem respostas directas. Às vezes argumentam que o problema precisa de ser clarificado, ou que certos problemas adicionais precisam de ser levantados. Outras vezes, argumentam que certos pressupostos precisam de ser desafiados. Outras vezes, ainda, argumentam que certas respostas ao problema são fáceis demais, isto é, não funcionam. Assim, se estes ensaios estiverem correctos, o problema será de resolução muito mais complexa do que poderíamos ter pensado. Estes resultados são todos importantes e filosoficamente valiosos.

Portanto, não há problema em fazer perguntas e levantar problemas nos nossos ensaios, mesmo que não possamos dar respostas satisfatórias a todos. Podemos deixar algumas perguntas não respondidas no final do ensaio. (Mas temos de deixar claro para o leitor que algumas questões ficarão propositadamente sem resposta.) E devemos dizer algo sobre como a questão poderia ser respondida, e o que torna a questão interessante e relevante para o tema em causa.

Se alguma coisa na abordagem que estamos a investigar não ficou clara, não a devemos disfarçar. Pelo contrário, devemos chamar a atenção para a falta de clareza e sugerir diferentes formas de a compreender. Temos ainda de explicar por que razão ainda não se pode dizer quais destas interpretações é a correcta.

Se apresentamos duas opiniões e, após um exame cuidadoso, não conseguimos decidir entre elas, tudo bem. Não há problema em dizer que os pontos fortes e fracos destas opiniões têm igual força, mas note-se que isto também é uma afirmação que exige explicação e defesa ponderada, como qualquer outra. Devemos apresentar razões que a apoiem, mas estas razões têm de ser suficientemente boas para eventualmente persuadir quem não acha que as duas opiniões têm igual força.

Às vezes, ao escrever, descobrimos que os nossos argumentos não são tão bons como pareciam no início. Podemos ter encontrado uma objecção a um argumento a que não conseguimos dar uma boa resposta. Não é caso para entrar em pânico. Se há uma dificuldade com o nosso argumento que não conseguimos resolver, temos de tentar descobrir por que razão não podemos fazê-lo. Não há problema em mudar a nossa tese para outra que seja defensável. Por exemplo, ao invés de escrever um ensaio que apresenta uma defesa inteiramente sólida da perspectiva P, podemos mudar de ideias e escrever um ensaio que seja mais ou menos assim:

Segundo uma perspectiva filosófica, P. Esta perspectiva é plausível, pelas seguintes razões...
Todavia, há algumas razões para duvidar se será verdade que P. Uma destas razões é X. X levanta um problema à opinião de que P porque...
Não é claro como o defensor de P pode superar esta objecção.

Ou podemos escrever um ensaio da seguinte forma:

Um argumento a favor de P é o "Argumento da Conjunção", que funciona como se segue...
À primeira vista, este argumento é bastante atraente. Todavia, falha pelas seguintes razões...
Podemos tentar corrigir o argumento, da seguinte maneira...
Mas estas correcções não funcionam, porque...
Concluo que o Argumento da Conjunção na verdade não consegue estabelecer que P.

Escrever um ensaio desse tipo não significa que nos "rendemos" à posição contrária. Afinal, nenhum destes ensaios nos compromete com a perspectiva não-P. São apenas justificações honestas da dificuldade de se encontrar argumentos conclusivos a favor de P. Mas pode ser que mesmo assim P seja verdade.

3. Reescreva, e continue a reescrever

Depois de termos escrito um rascunho completo do nosso ensaio devemos deixá-lo de lado por um dia ou dois. Então, devemos retomá-lo e relê-lo. À medida que for lendo cada frase, diga a si mesmo coisas como:

"Esta afirmação realmente faz sentido?" "Isto não está claro!" "Isto é pretensioso." "O que quer isto dizer?" "Qual é a conexão entre estas duas frases?" "Estou a repetir-me?", e assim por diante.

Certifique-se que todas as frases do seu rascunho fazem falta e livre-se daquelas que não fazem falta. Se não consegue identificar a contribuição de uma frase qualquer para a sua discussão central, livre-se dela, ainda que pareça boa. Nunca devemos inserir questões a mais nos nossos ensaios, a menos que sejam importantes para o argumento principal e que haja espaço para explicá-las.

Se não estiver satisfeito com alguma frase, pergunte a si mesmo por que razão essa frase o incomoda. Pode ser que não tenha entendido bem o que está a tentar dizer, ou que não acredite realmente no que está a afirmar.

Temos de nos certificar de que nossas frases dizem exactamente o que queremos dizer. Por exemplo, suponha-se que escrevemos "O aborto é o mesmo que assassinato". É isso realmente o que pretendemos dizer? Então, quando Oswald assassinou Kennedy, ele estava a fazer o mesmo do que a abortar Kennedy? Ou queremos dizer outra coisa qualquer? Talvez queiramos dizer que o aborto é uma forma de assassinato. Numa conversa, é razoável esperar que alguém entenda o que queiramos dizer, mas não deve escrever dessa maneira. Ainda que o nosso professor de filosofia consiga entender o que queremos dizer, está mal escrito. Na redacção filosófica, é preciso dizer exactamente o que se pretende.

Procure, ainda, prestar atenção à estrutura de seu esboço. Quando for revê-lo, é muito mais importante trabalhar na estrutura e clareza geral do trabalho do que ocupar-se em apagar uma frase ou palavra. Certifique-se de que seu leitor sabe qual é sua afirmação principal e quais são seus argumentos a favor dela. Temos de garantir que os nossos leitores são capazes de dizer qual é o ponto principal de cada parágrafo. Não basta que nós o saibamos. É preciso que seja óbvio para o leitor, mesmo para um leitor preguiçoso, tolo e maldoso.

Se puder, mostre o rascunho do seu ensaio a amigos ou colegas de curso e recolha alguns argumentos e conselhos. Recomendo vivamente que o faça. Os seus amigos compreendem os seus pontos principais? Há trechos obscuros ou confusos para os outros no seu rascunho? Se os seus amigos não são capazes de compreender tudo que escreveu, o professor também não o será. Os seus parágrafos e seu argumento podem parecer perfeitamente claros para si e não fazer sentido para mais ninguém.

Outra maneira boa de verificar seu rascunho é lê-lo em voz alta, o que o ajudará a perceber se é coerente. Nós podemos saber o que queremos dizer, mas o que pretendemos dizer pode não estar realmente escrito. Ler o ensaio em voz alta ajuda-nos a perceber falhas no nosso raciocínio, digressões e trechos obscuros.

Saiba que precisará de escrever muitos rascunhos de seu artigo. Pelo menos 3 ou 4!

QUESTÕES MENORES

Começar a escrever

Não comece com frases do tipo "Ao longo dos tempos, a humanidade tem reflectido sobre o problema do...". Não há necessidade de aquecimento. Vá directo ao ponto, na primeira frase.

Não inicie igualmente o artigo com frases do tipo "O dicionário Webster define alma como...". Os dicionários não são boas autoridades no campo da filosofia. Eles registam a maneira como as palavras são usadas no dia-a-dia, mas muitas destas palavras têm significados diferentes, especializados, na filosofia.

Gramática

Não devemos evitar repetições, se para as evitarmos obscurecemos o texto. Falar de Aristóteles, e depois de "o estagirita" e depois de "o discípulo de Platão" só para não repetir o nome de Aristóteles em nada ajuda a compreender o texto.
Evite deselegâncias gramaticais que dificultam a compreensão, como frase passivas ("A doutrina da imortalidade da alma foi aceite por Platão desde muito cedo" é muito mais difícil de perceber do que a activa: "Desde muito cedo que Platão aceitou a doutrina da imortalidade da alma.")
Podemos usar livremente a primeira pessoa nos nossos ensaios, sobretudo para marcar a diferença entre o relato do que dizem os outros filósofos e o que nós pensamos do que eles dizem. É mais claro dizer "Julgo que o cogito de Descartes é uma falácia subtil" do que dizer "Julgamos que o cogito de Descartes é uma falácia subtil".
Procure usar frases declarativas e assertivas simples, evite perguntas de retórica, exageros e hipérboles. É mais claro dizer "Julgo que este argumento está errado." do que dizer "Será que alguém pensa que este argumento está certo?".
Procure usar claramente os conectivos lógicos da linguagem. É mais claro dizer "Se a vida não tem sentido, não há valores morais" do que dizer "Considerando que a vida não tem sentido, somos forçados a concluir por necessidade que a existência de valores morais tem de ser uma ilusão". Domine o uso das conjunções (e), disjunções (ou), condicionais (se…, então…), negações (não) e bicondicionais (…se, e só se,…). Domine também o uso dos quantificadores (todos, alguns, pelo menos um, um e um só, etc.).
Leituras secundárias

Na maioria das disciplinas, há leituras complementares. Trata-se de leituras opcionais, e devem ser fruto de estudo independente.

Não precisamos de usar estas leituras complementares quando estamos a redigir um ensaio. O objectivo do ensaio é ensinar o estudante a analisar um argumento filosófico e a apresentar os seus próprios argumentos a favor ou contra uma dada conclusão. Os argumentos que estudamos nas aulas são, por si, suficientemente complexos para merecer toda a atenção do estudante.

Podemos escrever o ensaio como um diálogo ou um conto?

Não. Bem feitas, essas formas de redacção filosófica podem ser bastante eficientes. É por isso que nas aulas estudamos alguns diálogos e contos. Mas são extremamente difíceis de se fazer bem. É fácil cair na imprecisão e no uso de metáforas pouco claras. É preciso dominar os métodos comuns de redacção filosófica antes de se conseguir fazer um bom trabalho com estas formas mais difíceis.

Observações técnicas

Procure manter-se dentro do limite de número de palavras; nem mais, nem menos. Ensaios muito longos são tipicamente demasiado ambiciosos, ou repetitivos, ou cheios de digressões. A classificação dos estudantes sofrerá negativamente se os ensaios tiverem qualquer um destes defeitos. Por isso, é importante perguntar a si mesmo quais são as coisas mais importantes que tem de dizer, e o que pode ser deixado de fora.

Mas o seu ensaio também não deve ser demasiado curto! Não corte abruptamente um argumento. Se o tópico que escolheu levanta certos problemas, assegure-se de que lhes responde.

Use espaço duplo nos ensaios, numere as páginas e inclua margens largas. Um ensaio académico não deve ter capas de plástico, fotografias com cores, etc.; deve valer pela sofisticação do conteúdo e pela sobriedade da apresentação.

Coloque o seu nome no ensaio, e guarde uma cópia para si! (Estas coisas deveriam ser óbvias, mas aparentemente não são.)

COMO SERÁ CLASSIFICADO

Os estudantes são classificados com base em três critérios básicos:

Qual é o grau de compreensão dos assuntos do ensaio?
Que qualidade têm os argumentos que oferece?
A redacção é clara e bem organizada?
Os professores não avaliam o seu trabalho a partir de uma possível concordância com sua conclusão. Pode ser que venhamos a discordar entre nós sobre qual seria a melhor conclusão, mas não teremos dificuldade em concordar que tenha feito um bom trabalho argumentando a favor de sua conclusão.

Mais especificamente, faremos perguntas como as seguintes:

O estudante afirma claramente o que pretende com seu artigo? A sua tese principal é óbvia para o leitor?
O estudante oferece argumentos que apoiem as suas afirmações? É óbvio para o leitor quais são esses argumentos?
A estrutura do ensaio é clara? Por exemplo, é fácil perceber que partes de seu artigo são exposições de ideias e que partes são sua própria contribuição positiva?
A prosa é simples, fácil de ler e de fácil compreensão?
O estudante ilustra as suas afirmações com bons exemplos? Explica as noções principais? Diz exactamente o que quer dizer?
O estudante apresenta as opiniões de outros filósofos de forma precisa e caridosa?
Os comentários que mais frequentemente tenho feito aos artigos dos meus estudantes são os seguintes:

"Explique esta afirmação" ou "O que quer dizer com isto?" ou "Não compreendo o que está a dizer aqui".
"Esta passagem não está clara (ou confusa, difícil de ler)." "Complicado demais." "Difícil de acompanhar." "Simplifique."
"Por que razão afirma isto?" "Há necessidade de argumentos mais fortes aqui." Por que razão devemos acreditar no que diz?" "Explique por que razão isto é uma razão para se acreditar em P." "Explique por que razão isto se segue do que disse antes."
"Irrelevante."
"Dê um exemplo."
Tente antecipar estes comentários e evite que o professor os tenha de fazer!

Responder a comentários do professor

Quando tiver a oportunidade de reescrever um artigo corrigido pelo professor, mantenha as seguintes observações em mente.

Os textos que reescrever devem tentar superar os erros específicos e problemas indicados pelo professor. Se teve uma nota baixa, então seu rascunho estava, de um modo geral, difícil de ler, era difícil reconhecer o seu argumento, a estrutura do ensaio, e assim por diante. Só pode corrigir falhas como essas refazendo totalmente o trabalho. (Abra um novo documento no seu processador de texto.) Use o rascunho e as observações do professor para construir um novo esboço, e escreva a partir dele.

Tenha em mente que quando o seu professor dá uma nota a um ensaio reescrito ele pode reparar em falhas que deixou escapar na primeira leitura, em partes que não foram alteradas. Talvez estas falhas afectem a impressão geral de seu trabalho, mas o professor não deu nenhuma recomendação específica de como corrigi-las. Por isso, tente melhorar todo o trabalho, não apenas as passagens que o professor comentou.

É possível melhorar um ensaio sem que esta melhoria seja suficiente para garantir uma nota superior à primeira. Às vezes isso acontece. Mas espero que consiga fazer melhor.

Normalmente, não terá a possibilidade de reescrever seus ensaios depois de terem sido corrigidos. Por isso, precisa se disciplinar para escrever um rascunho, examiná-lo cuidadosamente, revê-lo e reescrevê-lo antes de o entregar ao professor.

James Pryor

Agradecimentos: Não quero atribuir crédito falso a este trabalho. A minha contribuição consistiu, na sua maior parte, em coligir e organizar sugestões de outras pessoas. Boa parte dos conselhos que apresento aqui foi tomada de empréstimo dos apontamentos de amigos e colegas. (Alison Simmons e Justin Broackes merecem crédito especial.) E é de esperar que eu tenha encontrado alguns destes conselhos ao ler outros guias deste género na Internet. Tenho muita pena de não ter registado essas dívidas.

Tradução de Eliana Curado
A Crítica agradece a autorização do autor para traduzir e publicar este ensaio, cujo original está em http://www.princeton.edu/~jimpryor/general/writing.html.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

O que é metafísica?

Para quem deseja saber o que é metafísica em suas aulas de Filosofia e não perguntou para o professor por qualquer motivo que seja. Eis um texto de Richard Taylor (1919-2003), filósofo estadunidense.


O que é Metafísica?

Richard Taylor

É costume dizer-se que cada um tem sua Filosofia e até que todos os homens têm opiniões metafísicas. Nada poderia ser mais tolo. É verdade que todos os homens têm opiniões, e que algumas delas - tais como as opiniões sobre religião, moral e o significado da vida - confinam com a Filosofia e a Metafísica, mas raros são os homens que possuem qualquer concepção de Filosofia e ainda menos os que têm qualquer noção de Metafísica.

William James definiu algures a Metafísica como "apenas um esforço extraordinariamente obstinado para pensar com clareza". Não são muitas as pessoas que assim pensam, exceto quando seus interesses práticos estão envolvidos. Não têm necessidade de assim pensar e, daí, não sentem qualquer propensão para o fazer. Excetuando algumas raras almas meditativas, os homens percorrem a vida aceitando como axiomas, simplesmente, aquelas questões da existência, propósito e significado que aos metafísicos parecem sumamente intrigantes. O que sobretudo exige a atenção de todas as criaturas, e de todos os homens, é a necessidade de sobreviver e, uma vez que isso fique razoavelmente assegurado, a necessidade de existir com toda a segurança possível. Todo pensamento começa aí, e a sua maior parte cessa aí. Sentimo-nos mais à vontade para pensar como fazer isto ou aquilo. Por isso a engenharia, a política e a indústria são muito naturais aos homens. Mas a Metafísica não se interessa, de modo algum, pelos "comos" da vida e sim apenas pelos "porquês", pelas questões que é perfeitamente fácil jamais formular durante uma vida inteira.

Pensar metafisicamente é pensar, sem arbitrariedade nem dogmatismo, nos mais básicos problemas da existência. Os problemas são básicos no sentido de que são fundamentais, de que muita coisa depende deles. A religião, por exemplo, não é Metafísica; e, entretanto, se a teoria metafísica do materialismo fosse verdadeira, e assim fosse um fato que os homens não têm alma, então grande parte da religião soçobraria diante desse fato. Também a Filosofia Moral não é Metafísica e, entretanto, se a teoria metafísica do determinismo, ou se a teoria do fatalismo fossem verdadeiras, então muitos dos nossos pressupostos tradicionais seriam refutados por essas verdades. Similarmente, a Lógica não é Metafísica e, entretanto, se se apurasse que, em virtude da natureza do tempo, algumas asserções não são verdadeiras nem falsas, isso acarretaria sérias implicações para a Lógica tradicional.

Isto sugere, contrariamente ao que em geral se supõe, que a Metafísica vê um alicerce da Filosofia e não o seu coroamento. Se for longamente exercido. o pensamento filosófico tende a resolver-se em problemas metafísicos básicos. Por isso o pensamento metafísico é difícil. Com efeito, seria provavelmente válido afirmar que o fruto do pensamento metafísico não é o conhecimento, mas o entendimento. As interrogações metafísicas têm respostas e, entre as várias respostas concorrentes, nem todas poderão ser verdadeiras, por certo. Se um homem enuncia uma teoria de materialismo e um outro a nega, então um desses homens está errado; e o mesmo acontece a todas as outras teorias metafísicas. Contudo, só muito raramente é possível provar e conhecer qual das teorias é a verdadeira. 0 entendimento, porém - e, por vezes, uma profundidade muito considerável do mesmo resulta de vermos as persistentes dificuldades em opiniões que freqüentemente parecem, em outras bases, ser muito obviamente verdadeiras. É por essa razão que um homem pode ser um sábio metafísico sem que, não obstante, sustente suas opiniões e juízos em conceitos metafísicos. Tal homem pode ver tudo o que um dogmático metafísico vê, e pode entender todas as razões para afirmar o que outro homem afirma com tamanha confiança. Mas, ao invés do outro, também vê algumas razões para duvidar e, assim, ele é, como Sócrates, o mais sábio, mesmo em sua profissão de ignorância. Advirta-se o leitor, neste particular, de que quando ouvir um filósofo proclamar qualquer opinião metafísica com grande confiança, ou o ouvir afirmar que determinada coisa, em Metafísica, é óbvia, ou que algum problema metafísico gravita apenas em torno de confusões de conceitos ou de significados de palavras, então poderá estar inteiramente certo de que esse homem está infinitamente distante do entendimento filosófico. Suas opiniões parecem isentas de dificuldades apenas porque ele se recusa obstinadamente a ver dificuldades.

Um problema metafísico é indispensável dos seus dados, pois são estes que, em primeiro lugar, dão origem ao problema. Ora o datum, ou dado, significa literalmente algo que nos é oferecido, posto à nossa disposição. Assim, tomamos como dado de um problema certas convicções elementares do senso comum que todos ou a maioria dos homens estão aptos a sustentar com alguma persuasão íntima, antes da reflexão filosófica, e teriam relutância em abandonar. Não são teorias filosóficas. pois estas são o produto da reflexão filosófica e, usualmente, resultam da tentativa de conciliar certos dados entre si. São, pelo contrário, pontos de partida para teorias, as coisas por onde se começa, visto que, para que se consiga alguma coisa, devemos começar por alguma coisa, e não se pode gastar o tempo todo apenas começando. Observou Aristóteles: "Procurar a prova de assuntos que já possuem evidência mais clara do que qualquer prova pode fornecer é confundir o melhor com o pior, o plausível com o implausível e o básico com o derivativo," (Física, Livro VIII, Cap. 3 ) . Exemplos de dados metafísicos são as crenças que todos os homens possuem, independentemente da Filosofia, de que existem, de que tem um corpo, de que lhes cabe algumas vezes uma opção entre cursos alternativos de ação, de que por vezes deliberam sobre tais cursos, de que envelhecem e morrerão algum dia etc. Um problema metafísico surge quando se verifica que tais dados não parecem concordar entre si, que têm. aparentemente, implicações que não se revestem de coerência entre si. A tarefa, então, é encontrar alguma teoria adequada à remoção desses conflitos.

Talvez convenha observar que os dados, como os considero, não são coisas necessariamente verdadeiras nem evidentes em si mesmas. De fato, se o conflito entre certas convicções do senso comum não for tão-só aparente, mas real, então algumas dessas convicções estão fadadas a ser falsas, embora possam, não obstante, ser tidas na conta de dados até que sua falsidade se descubra. É isso o que torna excitante, por vezes, a Metafísica; nomeadamente o fato de sermos coagidos, algumas vezes, a abandonar certas opiniões que sempre havíamos considerado óbvias. Contudo, a Metafísica tem de começar por alguma coisa e, como não pode começar, obviamente, pelas coisas que já estão provadas, deve começar pelas coisas em que as pessoas acreditam; e a confiança com que uma pessoa sustenta suas teorias metafísicas não pode ser maior do que a confiança que deposita nos dados em que aquelas repousam.

Ora, o intelecto do homem não é tão forte quanto a sua vontade, e os homens, geralmente, acreditam no que querem acreditar, particularmente quando essas crenças refletem o mérito próprio entre os homens e o valor de seus esforços. A sabedoria não é, pois, o que os homens buscam em primeiro lugar. Procuram, outrossim, uma justificação para aquilo em que crêem seja o que for. Não surpreende, portanto, que os principiantes em Filosofia, e mesmo os que já não são principiantes, tenham uma acentuada inclinação para se apegarem a alguma teoria que os atrai, em face de dados conflitantes, e neguem por vezes a veracidade dos dados, apenas por aquela razão. Tal atitude dificilmente se pode considerar propícia à sabedoria. Assim, não é incomum encontrarmos pessoas que, dizem elas, querem ardentemente acreditar na teoria do determinismo e que, partindo desse desejo, negam, simplesmente, a verdade de quaisquer dados que com ela colidam. Os dados, por outras palavras, são meramente ajustados à teoria, em vez da teoria aos dados. Mas deve-se insistir ainda que é pelos dados, c não pela teoria, que se terá de começar; pois se não partirmos de pressupostos razoavelmente plausíveis, onde irmos obter a teoria, diferente de se esposar apenas aquilo que os nossos corações desejam'? Mais cedo ou mais tarde poderemos ter de abandonar alguns dos dados do nosso senso comum, mas, ao fazê-lo, será em consideração a certas outras crenças do senso comum que relutamos ainda mais em abandonar e não em deferência pelas teorias filosóficas que nos atraem.

0 leitor é exortado. portanto, ao acompanhar os pensamentos que se seguem, a suspender os seus juízos sobre as verdades finais das coisas, uma vez que, provavelmente, nem ele nem qualquer outra pessoa sabe quais são essas verdades, e a contentar-se com a apreciação dos problemas da Metafísica. este é o primeiro e sempre o mais difícil passo. 0 resto da verdade, se alguma vez tiver a boa fortuna de receber uma parte dela, chegar-lhe-á do seu próprio íntimo, se acaso chegar, e não da leitura de livros.

0 ensaio que se segue constitui uma introdução - literalmente, um "encaminhamento à" Metafísica. Não é uma análise das concepções predominantes, e o leitor buscará em vão os nomes dos grandes pensadores ou o resumo das opiniões que eles defenderam. Os problemas metafísicos vão sendo trazidos à tona, e o leitor é simplesmente convidado a pensar neles de acordo com as diretrizes sugeridas. É por essa razão que, ao desenvolver os problemas mais estreitamente associados com o eu ou pessoa e seus poderes, particularmente nos primeiros três capítulos, a estilisticamente discutível primeira pessoa do singular, "Eu'', é empregada com freqüência, à maneira das Meditações de Descartes. 0 leitor compreenderá que as idéias dessa forma apresentadas têm por intuito significar as suas próprias e não quaisquer reflexões autobiográficas do autor.

In Taylor, R. (1969): Metafísica, Rio de Janeiro: Zahar, pgs. 13-17.

Para quem ainda insiste ser a Filosofia "inútil"

Inafortunadamente existem os que pensam ser a Filosofia "inútil", algo que quando muito seria um passatempo para desocupados. A seguir apresento um texto traduzido do filósofo inglês Simon Blackburn que poderá pôr em xeque tal preconceito notório. Muitos filósofos têm insistido que se por "inútil" se entender um pensamento não-servil, então a Filosofia seria "inútil" nesse e tão somente nesse sentido. Outros, contudo, têm demonstrado que o pensamento filósofico está longe de ser "inútil" no sentido comezinho de não servir para qualquer coisa que valha apena no mundo que consideramos real. Boa leitura.


31 de Março de 2007 · História da filosofia

A República de Platão
Simon Blackburn
Universidade de Cambridge


Se é que alguns livros mudam o mundo, a República pode bem reivindicar o primeiro lugar. É habitualmente considerada a realização suprema de Platão como filósofo e escritor, brilhantemente suspensa entre os primeiros diálogos zetéticos e inconclusivos e as especulações cosmológicas e dúvidas menos impositivas dos mais tardios. No decurso dos séculos foi provavelmente objecto de mais comentários e sujeito a críticas mais radicais e apaixonadas do que a grande maioria dos outros grandes textos fundadores do mundo moderno. Na realidade, a história das interpretações deste livro constitui, por si mesma, uma disciplina académica, com capítulos de especialistas sobre quase todos os episódios da história da religião e da literatura nos últimos dois mil anos, e até mais. Para mencionar apenas os poetas ingleses mais importantes, há livros integralmente dedicados ao platonismo e Chaucer, Spenser, Shakespeare, Milton, Blake, Shelley e Colleridge, para referir apenas alguns, e muitos outros sobre movimentos e épocas inteiras: Platão e o cristianismo, Platão e o renascimento, Platão e a época vitoriana, Platão e o nazismo, Platão e nós mesmos. A história da influência directa de Platão na filosofia constitui por si mesma outro estudo, apimentado por nomes como Fílon de Alexandria, Macróbio, Porfírio, Pseudo-Dionísio, Eriúgena, tal como os mais conhecidos Plotino, Agostinho e Dante. Por vezes, o Platão de que se trata é o autor de outros textos, nomeadamente do inspirado Banquete ou do teologicamente ambicioso Timeu. Mas a República raramente anda longe.

Quem quer que se demore pelos vastos e silenciosos mausoléus onde se alinham os trabalhos sobre Platão e a sua influência corre o risco de sufocar. Quem quer que escreva sobre este assunto tem de ter consciência de um gigantesco e relutante auditório, composto de estonteantes hordas de espíritos fiscalizando e criticando omissões e simplificações. Muitos destes espíritos pertencem aos mais brilhantes linguistas, académicos, filósofos, teólogos e historiadores das suas respectivas épocas que não vêem com bons olhos o jardim a que dedicaram as suas vidas ser espezinhado por estranhos e infiéis. E a República constitui o santo dos santos, mesmo no centro do santuário, uma vez que durante séculos foi o único tema obrigatório dos estudos filosóficos, e representou na educação desses mesmos académicos a peça central e inspiradora.

Platão escreveu a sua filosofia sob a forma de diálogos, uma forma que requer diferentes vozes e o fluxo e refluxo dos argumentos. Já na antiguidade se notou que o Sócrates, que é o herói desses diálogos, e o próprio Platão são personagens intermutáveis que facilmente admitem múltiplas interpretações: "É bem sabido que Sócrates tinha o hábito de reservar o seu conhecimento ou as suas crenças; um hábito que Platão aprovava", escreveu Santo Agostinho. Uma maneira de interpretar isto é que Platão, e presumivelmente Sócrates, tinham realmente doutrinas a ensinar, mas, por qualquer razão irritante, preferiam revelá-las apenas parcialmente, um pouco de cada vez, numa espécie de striptease intelectual. Esta foi a orientação seguida ocasionalmente por comentadores tontos apaixonados pela ideia de mistérios esotéricos escondidos, acessíveis exclusivamente aos iniciados, entre os quais lhes agrada imaginar-se incluídos.

O modo correcto de interpretar a observação de Agostinho é que Platão sentia que a filosofia era mais o objecto de uma actividade do que a absorção de um corpo estático de doutrina. Um processo, não um resultado. Sócrates permanece o grande educador, e aqueles que o procuravam seriam simultaneamente ouvintes e questionadores, participantes no diálogo, e teriam eles próprios de enveredar pelos labirintos do pensamento. A recepção passiva da palavra de nada valeria — este havia sido um dos erros dos adversários de Platão, os sofistas, que cobravam dinheiro por fornecer o produto que vendiam como sabedoria prática (o que nos poderia fazer pensar nas pilhas de saber vazio e literatura comercial que atafulham actualmente as livrarias). No final do diálogo Fedro, de Platão, Sócrates profere um discurso contra o ler filosofia como parente pobre do fazê-la. Muitos repetiram esta ideia posteriormente. Schopenhauer descreve a leitura como um mero substituto do pensar por si e prefere citar Goethe, o alemão de saber enciclopédico: "O que herdastes dos vossos antecessores, tendes primeiro de ganhá-lo por vós mesmos a fim de poderdes possuí-lo." Robert Louis Stevenson defendeu que a literatura não é senão a sombra de uma boa conversação. "A conversa é fluida, experimental, continuamente prosseguindo a busca e o progresso; enquanto as palavras escritas permanecem rígidas e tornam-se como que em ídolos até mesmo para o escritor, escamoteando o erro incontornável e fixando os dogmatismos no âmbar da verdade."

A insistência no compromisso, em Platão, vai de par com a sua adopção da forma do diálogo, em que diferentes vozes se fazem ouvir, e são as curvas e contracurvas da argumentação, mais do que uma qualquer conclusão obtida, que nos ajudam a expandir o espírito, à medida que lemos. Nesta perspectiva, a filosofia consiste na descoberta através do diálogo e argumentação ("dialecticamente"); tudo o que lermos mais tarde pode, quando muito, constituir um instrumento para recordar a compreensão obtida neste processo.

Esta concepção dramática do que Platão representa torna mais difícil de criticar. Pode-se rejeitar uma conclusão, mas é muito mais difícil rejeitar um processo de expansão imaginativa e, se levarmos a sério o paralelo com o teatro, pode parecer tão tolo como "rejeitar" o King Lear ou o Hamlet. Na realidade, o paralelismo não impede a crítica, mas encoraja-a. No decurso dos dramas platónicos, as teses são afirmadas e defendidas, os argumentos apresentados e as pessoas persuadidas. Por vezes, o drama culmina numa aparente conclusão. E em todos estes casos é apropriado perguntar-se se as teses, os argumentos e conclusões são de facto aceitáveis. Fazê-lo não é nem mais nem menos do que participar no drama e entrar na arena dialéctica, a actividade que Sócrates e Platão nos recomendam.

Mas Platão e a República têm os seus detractores. No quadro de Rafael A Escola de Atenas, Platão e Aristóteles ocupam ambos o centro da cena, mas enquanto Aristóteles aponta para a Terra, Platão aponta para cima, para os Céus. Coleridge estabeleceu o mesmo contraste, dizendo que todos nascem ou platónicos ou aristotélicos, querendo significar que Platão é um místico, que se movimenta na abstracção, enquanto Aristóteles é o homem empírico e prosaico que encara as coisas como se apresentam no mundo tal qual o vemos. E Coleridge prosseguiu: "Não creio ser possível que alguém que nasceu aristotélico venha a tornar-se um platónico e tenho a certeza que ninguém que nasceu platónico pode alguma vez tornar-se um aristotélico."

Muito da República pode ser lido como relativamente incontroverso, independentemente da nossa posição quanto ao conteúdo metafísico dos capítulos centrais da obra, em especial o excerto que todos recordam, o Mito da Caverna. Na melhor das interpretações, está muito longe de sugerir uma imagem visionária e romântica, fruto de êxtases e iluminações divinas. De facto, podemos dar-lhe um sentido menos enfático, e vê-lo como um apelo razoável a uma compreensão do mundo real do mesmo género da que, dois milénios depois, é oferecida pela ciência e pela matemática. Pode ser que Platão tenha sido terrivelmente atraiçoado pelos platónicos — um destino frequente dos grandes filósofos.

Mas há outras razões, menos doutrinais, que deviam levar-nos a considerar surpreendente a soberania da República. A obra arrasta-se infindavelmente de forma labiríntica. Longe de serem convincentes, os argumentos vão desde os menos sólidos até aos tão absurdamente frágeis que levam alguns intérpretes a negar que alguma vez tenha havido a intenção de os apresentar como argumentos. A teoria sobre a natureza humana, tal como se apresenta, é fantasiosa e pode parecer inconsistente. As suas supostas implicações políticas são fundamentalmente desagradáveis e muitas vezes chocantes. Tanto quanto Platão nos deixou um legado no domínio da política, incluem-se nele a teocracia ou governo de sacerdotes, o militarismo, o nacionalismo, a hierarquia, o conservadorismo, o totalitarismo e o completo desprezo pelas estruturas económicas da sociedade, nascido da sua condição privilegiada de esclavagista. Na República, Platão consegue ligar-se simultaneamente ao mais rígido dos conservadorismos e à mais extrema e visionária das utopias. Ainda por cima, a teoria do conhecimento da obra é um verdadeiro desastre. A tentativa de chegar ao que aparentemente pretendia — mostrar que o indivíduo moral, e só ele, é feliz — é, em grande medida, uma sequência de passes de magia.

Mais insidiosamente, na medida em que se pode falar de um estilo estético ligado a Platão, não é algo que nos possa facilmente fascinar, a menos que estejamos demasiado impregnados dele para podermos escapar-lhe. A quinta-essência do platonismo, pelo menos em Inglaterra, encontramo-la na luminescência dourada da época vitoriana tardia e da época eduardina — o vagamente homoerótico, vagamente religioso, emocionalmente paralisado, ocioso e classista mundo dos campos de jogos, colégios caros e universidades preguiçosas, o mundo de Walter Pater ou de E. M. Forster, de literatos e estetas meio esquecidos como John Addington Symonds ou Goldsworthy Lowes Dickinson, ou meninos bonitos poetas como Rupert Brooke. Esse não é o nosso mundo. Também não é propriamente um mundo de esclavagistas, mas o capitalismo regurgita os seus próprios parasitas.

Outro aspecto igualmente chocante, aos olhos de alguns, é que, ao escrever a República, Platão atraiçoou completamente o seu mestre Sócrates. Sócrates é o primeiro e o maior dos heróis liberais, mártir da liberdade de pensamento e expressão. Para autores como John Stuart Mill e George Grote — pensadores pragmáticos, liberais e utilitaristas — esse é o verdadeiro Sócrates, o eterno espírito de reflexão, crítica e, potencialmente, de oposição ao próprio estado. Mas na República ele é apresentado como um perfeito dogmático, em completo contraste com a abertura de espírito, a paciência e o espírito inquisitivo que os seus admiradores apreciam. Aparece como porta-voz de uma sociedade repressiva, autoritária, estática e hierárquica na qual tudo até mesmo as relações sexuais e o planeamento familiar é regulamentado pelas classes políticas que, deliberadamente, usam a mentira para esse fim. No sistema social que nos apresenta, o Sócrates liberal teria sido executado muito mais expeditamente do que pela democracia ateniense. Na República, o Sócrates liberal é o porta-voz da ditadura. Ao apresentá-lo desta forma, Platão atraiçoa-se a si mesmo: ele próprio, em tempos poeta, exige agora o exílio dos poetas.

Uma obra pode ter muitos defeitos e serem-lhe perdoados se o autor se revela um exemplo de doçura e luminosidade, como acontece com a personagem literariamente criada por Platão, o Sócrates dos primeiros diálogos. Mas no caso isso não nos ajuda muito. É verdade que, no início, deve ter havido em Platão a doçura e a luz necessárias à criação do Sócrates heróico e liberal. Mas se essa figura se esfuma, como acontece na República, não há muito mais que possamos colocar no prato da balança. Sabemos muito pouco sobre Platão e o que há para saber não é, de um modo geral, atraente. Integrado no seu contexto histórico, podemos encontrar um velho azedo típico, um aristocrata desiludido, odiando a democracia ateniense, convencido de que governam as pessoas erradas, com um medo profundo da própria democracia, constantemente escarnecendo dos artesãos, agricultores e, afinal, de qualquer trabalho produtivo, desprezando radicalmente todo o anseio dos trabalhadores pela educação, e, em última análise, manifestando um apego indefectível ao regime intolerável de Esparta.

Mas, como tantas vezes em Platão, há algo que confunde essa imagem, simpaticamente revelado pela reacção de Nietzsche ao facto de Platão, no seu leito de morte, ter lido Aristófanes, o autor cómico: "nada me fez meditar tanto na natureza secreta e esfíngica de Platão do que o felizmente conservado episódio de que, debaixo da almofada do seu leito de morte não havia uma bíblia, nem nada de egípcio, pitagórico ou platónico — mas um livro de Aristófanes. Como poderia Platão ter suportado a existência — uma existência grega que ele repudiou — sem Aristófanes?"

Dizem-nos que Jesus chorou, mas não que tenha rido. Com Platão, tal como com Sócrates, o riso está frequentemente mais perto do que se imagina. E isto é um bom sinal. Talvez o velho azedo não fosse, afinal, tão azedo. Mas isto não tem realmente importância, porque é a obra concreta que perdura que nos diz respeito, e não a sombra do seu autor que partiu há muito. E, aquilo que se costuma dizer, que apesar de muitos livros serem erradamente esquecidos, nenhum é erradamente lembrado, é uma verdade inquestionável. Assim, precisamos de trabalhar arduamente para nos reconciliarmos com o poder da República que, incontestavelmente, perdura. Precisamos de compreender a atracção que este livro exerceu e continua a exercer sobre a imaginação dos leitores.

Simon Blackburn
Tradução de Luís Gottschalk

Texto retirado de A República de Platão: Uma Biografia (Jorge Zahar, 2008).