quinta-feira, 5 de março de 2009

Ateísmo militante

O prof. Paulo Margutti, titular de filosofia da UFMG, concedeu uma entrevista à Revista Eletrônica IHU Online (Instituto Humanitas Unisinos) sobre o crescimento do neo-ateísmo contemporâneo. Posteriormente me posicionarei em relação aos questionamentos do eminente colega da UFMG.
Ao contrário de algumas infelizes tendências céticas contemporâneas, eu considero as diferentes perspectivas em questão.


ENTREVISTA IHU 26-11-2007

Para o filósofo Paulo Margutti, docente no departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), a postura adotada pelos neo-ateístas contém, pelo menos, duas dificuldades. A primeira é que, “apesar da boa intenção de combater o fundamentalismo em todas as suas formas, eles acabam confundindo fanatismo religioso com religião”. A segunda dificuldade é que essa postura coloca seus defensores ironicamente numa “posição de ‘apóstolos’ da racionalidade contra a barbárie da religiosidade – e, convenhamos, isso pode estimular em algumas mentes despreparadas um novo tipo de intolerância fundamentalista contra todas as formas de religiosidade, em franca contradição com os ideais iluministas que inspiram essa mesma postura”. Margutti pondera que, mesmo assim, os neo-ateístas não podem se acusados de fundamentalistas. “Eles simplesmente estão expressando com clareza as suas opiniões, tomando posição num debate importante e forçando as pessoas a reavaliarem suas convicções”. Os subtítulos são nossos.

Margutti graduou-se em Filosofia, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Ciências do Homem e Fenomenologia, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), e mestre em Filosofia Contemporânea, pela UFMG. Cursou doutorado em Filosofia na Universidade de Edinburgo, Escócia, com a tese Wittgenstein and semantic presuppositions generated by definite descriptions in subject-position. É autor de Iniciação ao silêncio (Análise do Tractatus de Wittgenstein) (São Paulo: Loyola, 1998) e Introdução à lógica simbólica (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001). No livro Dialética e auto-organização (São Leopoldo: Unisinos, 2003), escreveu o capítulo “Dialética, lógica formal e abordagem sistêmica”, em que discute as idéias de Cirne Lima. Margutti já concedeu duas entrevistas à IHU On-Line: uma na edição nº 83, de 10-11- 2003, intitulada “Os rumos da Filosofia no Brasil”, e outra na edição 143, de 30-05-2005, sob o título “Dialética para entender a cultura”, por ocasião de sua vinda para o Congresso Dia/2005, na Unisinos, falando sobre Dialética e tempo. A entrevista a seguir foi concedida por e-mail. Confira.

Entrevista com Paulo Margutti: Novos ateístas. Apóstolos da racionalidade contra a barbárie?

IHU On-Line - O cardeal Carlo Maria Martini afirmou, em artigo publicado no Corriere de la Serra, que “existe em nós um ateu potencial que grita e sussurra a cada dia suas dificuldades em crer”. Como podemos compreender essa afirmação frente à situação de retorno do sagrado que se experimenta atualmente? Paira uma “tentação” pelo ateísmo em nossos dias?
Paulo Margutti - Penso que a afirmação do Cardeal Martini se refere ao fato de que cada um de nós vive um conflito que constitui o cerne da própria condição humana. Por um lado, temos uma forte tendência a buscar misticamente um contato com uma realidade superior, capaz de libertar-nos, ainda que provisoriamente, das contingências e misérias deste mundo. Essa tendência é oposta àquela descrita pelo Cardeal Martini e poderia ser formulada assim: “existe em nós um crente potencial que grita e sussurra a cada dia suas dificuldades em não crer”. As pessoas inspiradas por essa tendência costumam desprezar a vida neste mundo, pois estão buscando alguma coisa que se encontra para além dele. Em virtude disso, criticam aqueles que se prendem ao mundo, por acharem que estão no caminho errado para encontrar o sentido da vida. Por outro lado, temos também uma forte tendência a rejeitar racionalmente a busca desse contato místico, reconhecendo e aceitando as contingências e misérias deste mundo. As pessoas inspiradas por essa tendência costumam valorizar a vida neste mundo, pois estão buscando alguma coisa que se encontra nele mesmo. É o que os neo-ateístas têm feito. Mas a verdade é que o ser humano existencialmente inquieto vive basculando entre essas duas tendências. Por vezes, ele se entrega completamente ao sentimento religioso. Outras vezes, ele rejeita tais sentimentos, principalmente em nome da razão científica. Em minha opinião, a condição humana é tal que não se trata de escolher qual dessas tendências é a correta. Elas são irredutíveis e complementares em nossas vidas.

No atual contexto, o Cardeal Martini parece estar expressando sua preocupação com a mais recente manifestação da “tentação” pelo ateísmo, representada por autores como Dawkins , Dennett e Onfray. Mas convém lembrar que os ataques desses autores à religião podem muito bem estar expressando a preocupação deles com o retorno ao sagrado, uma das características marcantes de nossa época O que estamos observando é a novidade de um debate público entre as duas tendências que caracterizam a condição humana.

IHU On-Line - Qual é o seu ponto de vista sobre a tentativa de se combater o fundamentalismo religioso através do fundamentalismo ateísta, como têm feito Dawkins, Dennet, Onfray e Harris? Que inconsistências essa proposta apresenta?
Paulo Margutti - Como, atualmente, o avanço da religião parece ser muito mais expressivo do que a sua rejeição pelos partidários da atitude científica, isso constitui um forte motivo de preocupação para esses últimos. Nessa perspectiva, eles parecem estar vendo a si próprios como defensores da razão iluminista contra o obscurantismo e o fanatismo dos tempos atuais. Mas a postura adotada pelos neo-ateístas envolve pelo menos duas dificuldades. Em primeiro lugar, apesar da boa intenção de combater o fundamentalismo em todas as suas formas, eles acabam confundindo fanatismo religioso com religião. O fanatismo religioso é um problema grave que todas as épocas históricas tiveram de enfrentar. Muita incompreensão e violência resultaram dele. Mas ele não se identifica com a religião ou com a religiosidade, entendida como a experiência íntima de contato com uma realidade superior. Essa experiência foi a marca característica de muitos gênios que contribuíram de um modo ou de outro para o melhor conhecimento de nós mesmos enquanto seres humanos. De um modo geral, todos ou quase todos eles tiveram suas criações originais influenciadas ou baseadas em alguma vivência religiosa. Os neo-ateístas não parecem estar levando em conta esse fato de maneira adequada. Dawkins, por exemplo, reconhece a existência de um tipo de religião decente e contido, mas alega que ele é numericamente irrelevante, diante do fanatismo dominante. Ora, essa alegação, além de controversa, permite a confusão que acabo de denunciar. Em segundo lugar, a postura dos neo-ateístas os coloca ironicamente numa posição de “apóstolos” da racionalidade contra a barbárie da religiosidade – e, convenhamos, isso pode estimular em algumas mentes despreparadas um novo tipo de intolerância fundamentalista contra todas as formas de religiosidade, em franca contradição com os ideais iluministas que inspiram essa mesma postura. Mesmo assim, não me parece que os neo-ateístas mencionados possam ser acusados de fundamentalistas. Eles simplesmente estão expressando com clareza as suas opiniões, tomando posição num debate importante e forçando as pessoas a reavaliarem suas convicções. Isso é um bom sinal, pois, por muito tempo na história da humanidade, os ateus tiveram de se manter calados. E agora estão se sentindo à vontade para expressar suas opiniões sem receio de punição. Enquanto nos mantivermos no plano da discussão intelectual esclarecida, teremos todos a oportunidade de nos beneficiar.

IHU On-Line - Que tipo de ética é necessária e possível numa sociedade dividida entre dois fundamentalismos?
Paulo Margutti - Uma ética da tolerância e da compreensão, que se realiza através do diálogo democrático e aberto. Autores como Apel , Habermas e Rorty já defenderam alguma coisa nessa linha, em que pesem as diferenças entre eles. De todos, Rorty me parece o mais sensato e aberto, pois não constrange o diálogo com condições transcendentais, como faz Apel, nem universais, como faz Habermas. Essas condições tendem a enclausurar o diálogo numa camisa de força, dificultando enormemente a solução dos problemas. Rorty simplesmente aponta para o fato de que vivemos num mundo contingente e precário, em que somos constantemente levados a reavaliar nossas crenças em função das mudanças de circunstâncias. E sugere que façamos essa reavaliação através de uma conversação democrática e sem coerções, mantendo sempre em mente a precariedade e a contingência. Sei que Rorty não era uma pessoa religiosa e que não se interessava pela religião, mas sei também que ele não se oporia em princípio a discutir a questão da religiosidade no mesmo clima de conversação aberta antes mencionado e que estaria genuinamente disposto a ouvir as pessoas religiosas. E essa certamente seria uma das maneiras de levar as pessoas a perceberem, por exemplo, no conflito entre árabes e judeus, que se chegou a uma situação em que todos perdem, enquanto continuarem agindo como estão. E isso talvez nos fornecesse alguma pista prática para resolver o mais importante conflito contemporâneo, que não é aquele entre os fanáticos religiosos e os ateus iluministas, mas aquele entre o fundamentalismo islâmico terrorista e o fundamentalismo americano belicista. O primeiro encontra no fanatismo religioso suicida a única resposta à humilhação que sofre sistematicamente da civilização ocidental, representada pelos Estados Unidos da América. O segundo encontra na guerra preventiva e unilateral, sem apoio da ONU, a única resposta aos atentados que vem sofrendo. E a verdade é que não há diálogo. Ninguém se preocupa em compreender o que está se passando com o adversário, para tentar uma mudança significativa de estratégia. Nesse contexto, o risco que correm os neo-ateístas é o de terem suas críticas ao fundamentalismo religioso apropriadas pelo fundamentalismo americano belicista, que já se arvora em defensor da racionalidade ocidental contra o fanatismo islâmico e não teria escrúpulos em aproveitar-se desse reforço ideológico

IHU On-Line - Para Michel Onfray, a “fé tranqüiliza” e a “razão preocupa”, do que se infere que o cristão é um ser infantilizado. Essa idéia, que remonta a Freud , fundamenta-se, também, na disjunção entre fé e razão? Por que tantos pensadores continuam a afirmar que ambos os campos não podem ser conciliados?
Paulo Margutti - Antes de responder a essa questão, gostaria de lembrar que os apóstolos do ateísmo iluminado não estão dando a devida atenção aos autores que teriam efetivamente alguma coisa de importante a dizer a respeito da religião. Eles simplesmente chegaram à conclusão de que a religião é uma forma de fanatismo irracional e se fecharam a qualquer possibilidade de discutir o assunto de maneira mais aberta. Nessa perspectiva, o livro de Dawkins, Deus, um delírio, é paradigmático. A bibliografia ali apresentada por ele é – paradoxalmente para a sua auto-imagem de pesquisador esclarecido e aberto – voltada predominantemente para os defensores da mesma posição que o autor. Os verdadeiros adversários não são sequer considerados. Falta um Agostinho , um Kant , Dostoiévski , um Tolstoi , um Schopenhauer , um William James , um Wittgenstein , só para citar alguns exemplos. É verdade que Dawkins chega a mencionar alguns desses autores, como Kant, Dostoiévski e Wittgenstein. Mas Dawkins só está interessado no Kant iluminista e não leva em conta as posições de Dostoiévski e Wittgenstein no que diz respeito à religiosidade. Aliás, tudo indica que Dawkins não leu As variedades da experiência religiosa, de William James. Nesse livro, o autor, que não era uma pessoa religiosa, argumenta que a religião e a explicação racional pertencem a domínios completamente diferentes. A religião envolve uma experiência de contato com uma realidade superior. Essa experiência ocorre “fora” dos padrões normais de percepção, caracterizando-se pela inefabilidade e transitoriedade. Mesmo assim, ela possui um valor cognitivo inegável, que traz consigo uma convicção profunda e altera radicalmente as nossas vidas. Esse tipo de experiência constitui um fenômeno antropológico importante e não pode ser adequadamente avaliada através de nossa dimensão racional. Para James, um dos maiores equívocos seria tentar justificar ou criticar racionalmente a experiência religiosa. Não se demonstra ou refuta a existência de Deus, mas se vivencia misticamente o contato com Ele. Nessa perspectiva, a fé não tranqüiliza, mas preocupa mais do que a razão.

Inquietude existencial
O sentimento de culpa experimentado pelo crente que não está conseguindo o almejado contato com Deus é dos mais terríveis. Pascal pode ser citado aqui como um exemplo de inquietude existencial num homem de fé Quanto à questão da justificação racional, é certo que o místico não tem como satisfazer às exigências científicas do ateu iluminista, que, em virtude disso, o considera irracional e infantilizado. Mas também é certo que o ateu iluminista também não tem como explicar racionalmente a existência e a persistência dessa experiência e da convicção que dela decorre na história do gênero humano. Por exemplo, as tentativas de Dawkins no sentido de explicar o fenômeno religioso através da evolução são apenas esboços incompletos e não tocam o ponto principal: a experiência mística que a caracteriza. Como se pode ver, não se trata de “provar” para um ateu que Deus existe ou de “refutar” uma prova da existência de Deus para um crente: a experiência religiosa é algo intensamente vivido e não se dá no domínio da pura racionalidade. Com base nisso, Wittgenstein, um dos seguidores de James nessa perspectiva, chegou a dizer que expressões como crer em Deus e não crer em Deus não são contraditórias. Com efeito, uma pessoa que crê em Deus se encontra num plano tão diferente de uma pessoa que não crê em Deus que as duas não estão efetivamente se comunicando numa dimensão estritamente lógica. Nessa mesma linha de raciocínio, Wittgenstein afirmou no Tractatus que, se todos os problemas científicos fossem resolvidos, a questão do sentido da vida não seria sequer tocada. Antes de Wittgenstein, o físico Boltzmann manifestou a mesma opinião. Freud, que Onfray elogiosamente considera um dos grandes críticos da religião, reconhece a existência do sentimento religioso e lhe atribui caráter “oceânico”. Mesmo assim, Freud o reduz a uma espécie de neurose, num viés semelhante ao de Dawkins, que o reduz a uma “ilusão”. Não nos esqueçamos, porém, de que foi essa “neurose” ou essa “ilusão” a principal responsável por inúmeros avanços no conhecimento que temos de nós mesmos e do mundo, através dos trabalhos de gênios. Quase todos partem de uma intuição originária, de caráter místico, para levarem adiante as suas criações originais. Não é de admirar que Dawkins, em seu livro, gaste dois longos capítulos para discutir racionalmente a questão da existência de Deus. Num deles, Dawkins refuta os argumentos tradicionais a favor da existência de Deus; no outro, ele oferece os motivos pelos quais, quase com certeza, Deus não existe. Como se pode ver, Dawkins não parece saber do que está falando. O mesmo parece valer para Onfray e Dennett. Eu recomendaria a todos eles a leitura dos autores acima mencionados, principalmente de William James. Isso deixaria claro o porquê da insistência de muitos pensadores, entre os quais me incluo, em manter separados os domínios da fé e da razão.

IHU On-Line - John F. Haught compatibiliza a Teoria da Evolução com o desígnio inteligente. A filosofia de Wittgenstein, sobretudo a do segundo período, possibilita aproximar fé e ciência? Como? Ou a fé é uma experiência do incomensurável, e não pode ser compreendida por palavras?
Paulo Margutti - Já fiz algumas considerações a esse respeito na resposta à questão anterior. No Tractatus, Wittgenstein separa explicitamente a fé e a ciência, em virtude da influência não só de William James, mas também de Schopenhauer, Weininger, Mauthner, Boltzmann e Tolstoi. Na primeira filosofia de Wittgenstein, a linguagem só pode descrever os fatos do mundo, ou seja, fazer ciência, enquanto a experiência religiosa fica reduzida à contemplação silenciosa. É conhecida a sua afirmação no final da obra: “sobre o que não se pode falar, deve-se calar”. Alguns intérpretes de Wittgenstein pensam que, na elaboração de sua segunda filosofia, ele admite a possibilidade de jogos de linguagem religiosos e isso retiraria a experiência religiosa da dimensão do silêncio. Em minhas pesquisas a respeito desse autor, porém, cheguei à conclusão contrária. Durante toda a sua vida, Wittgenstein foi uma pessoa profundamente religiosa, que buscava atormentadamente pela experiência mística e que só a concebia como algo pessoal e incomunicável. A filosofia das Investigações altera a concepção wittgensteiniana de linguagem, é verdade, mas mantém a perspectiva ético-religiosa do Tractatus. A influência de William James foi uma constante na vida de Wittgenstein. Em conseqüência, ele nunca tentou conciliar fé e razão, porque as considerava pertencentes a domínios complementares. Parece-me que ele tem razão nesse aspecto. Não há necessidade de conciliar a fé e a ciência. Cada uma se aplica a um domínio específico, que não interfere no outro. A mecânica quântica constatou que, paradoxalmente, um elétron se comporta, por vezes, como onda, e, por vezes, como partícula. E essa aparente contradição não impediu a física de avançar: apenas deixou claro que a realidade é muito mais complexa do que nossas categorias racionais são capazes de explicar. Talvez pudéssemos fazer uma analogia aqui, no que diz respeito aos poderes cognitivos do ser humano. Paradoxalmente, ele pode conhecer não só de maneira inefavelmente intuitiva, como acontece com os místicos, mas também de maneira racionalmente discursiva, como acontece com os cientistas. Essa aparente contradição não nos impediu de avançar até hoje: apenas mostrou que somos muito mais complexos do que a maneira pela qual os neo-ateístas iluministas querem nos retratar. Possuímos dimensões profundas que escapam ao domínio da racionalidade estrita. A complementaridade dialética das faculdades cognitivas mencionadas, irredutíveis e sem síntese aparente, parece ser a nossa marca registrada.

IHU On-Line - Deus como ficção útil é outro argumento recorrente dos ateístas contra a religião. Caso Deus fosse mesmo uma ficção e usado em nome de uma melhor convivência humana, não seria melhor mantê-lo do que descambar no niilismo total? Se isso acontecesse, não estaríamos caminhando para um cristianismo sem Deus?
Paulo Margutti - Com base nas considerações feitas até agora, espero ter deixado claro que a idéia de Deus como ficção útil só poderia ser formulada por uma pessoa que nunca teve a experiência religiosa. Reitero aqui que essa pessoa não sabe bem do que está falando. Desse modo, a sugestão de que, mesmo como ficção útil, Deus poderia ser utilizado em nome de uma melhor convivência humana, sem cair no niilismo total, constitui um falso problema. O mesmo ocorre com a discussão a respeito do ateísmo cristão ou cristianismo sem Deus, que Onfray considera uma das características do mundo atual que deve ser superada por um autêntico ateísmo ateu, pós-moderno. Pode ser que haja pensadores que não mais acreditem em Deus e permaneçam fiéis à moral cristã. Mas se não há Deus, não há mais cristianismo em sentido estrito. Além disso, a presença de tais pensadores na cultura contemporânea não me parece tão significativa a ponto de merecer uma denominação e um estudo especial. Não há espaço para discutir isso aqui, mas a afirmação de Onfray de que o cristianismo sem Deus é uma fase a ser superada em direção ao continente pós-cristão me parece extremamente controversa. Há evidências bastante fortes em sentido contrário, ou seja, de que nos dias de hoje o sentimento religioso tem-se fortalecido enormemente. O livro de Onfray poderia ser inclusive explicado como tendo surgido a partir do temor diante desse fato e da identificação inadequada que ele faz entre esse sentimento e o puro fanatismo.

IHU On-Line - Onfray acredita que rumamos para um continente pós-cristão. Você concorda? Essa é uma conseqüência natural da pós-modernidade?
Paulo Margutti - Já comentei algo a esse respeito na resposta anterior. Gostaria de acrescentar aqui que fiquei admirado ao verificar que, em seu livro, Onfray também faz uma filosofia da história que nada fica devendo às especulações fantasiosas do passado. Para ele, a cultura contemporânea está marcada por uma clara oposição entre os monoteísmos de ontem e o ateísmo de amanhã. Ele pensa que essa oposição se dá entre Moisés, Jesus, Maomé e suas religiões do Livro contra Holbach , Feuerbach, Nietzsche e suas fórmulas filosóficas de desconstrução radical de mitos e ficções. Ora, uma análise minimamente realista da situação revela justamente o contrário: a cada dia que passa, mais e mais fiéis se acumulam nas igrejas, em busca do consolo da religião, sob os olhares preocupados de defensores das Luzes, como Onfray. Essa sim, parece ser uma das conseqüências da pós-modernidade. É verdade que muitos desses fiéis irão se desencaminhar pelos meandros do fanatismo religioso – e isso constitui motivo de preocupação para todos nós. Mas também é verdade que muitos desses fiéis serão capazes de vivenciar uma autêntica experiência religiosa, que os tornará pessoas melhores e mais capazes de conviver com seus semelhantes. Minha hipótese é que a previsão de Onfray está na contramão da história. Mas o tempo dirá quem tem razão.

IHU On-Line - Esse mesmo autor subverte a afirmação de Ivan Karamázov dizendo que, “porque Deus existe, então tudo é permitido”, como forma de justificar os excessos cometidos em nome da religião. Pensando na situação das religiões atualmente, que aspectos válidos e reducionistas se encontram nessa idéia?
Paulo Margutti - Onfray subverteu a afirmação de Ivan Karamázov porque não entendeu Dostoiévski, um autor profundamente religioso. A fórmula de Onfray é apenas mais uma comprovação de que ele confunde religiosidade com fanatismo religioso e ataca o que, no fundo, desconhece. Isso é uma posição reducionista que deve ser evitada. Dawkins também discute o dito de Ivan Karamázov e pensa que ele significa simplesmente o seguinte: a pessoa que o admite pensa que o único motivo para tentar ser bom é obter a aprovação e recompensa de Deus e evitar sua reprovação e punição. E isso só revelaria a mesquinharia dessa pessoa. Ora, essa interpretação também é equivocada: não é esse o sentido religioso profundo da colocação dostoievskiana. O que ela quer dizer é que só aquele que já sente misticamente em si a presença de Deus é que tem condições de sentir-se eticamente responsável. A interação entre a vontade própria e a vontade divina só tem condições de surgir efetivamente para aquele que experiencia de algum modo a vontade divina. Aquele que não sente misticamente em si a presença de Deus e quer explicar tudo racionalmente, como acontece com Onfray e Dawkins, não tem condições de compreender a responsabilidade ética vivida pelo crente e tenderá a explicá-la com base no interesse mesquinho. Como se pode ver, Onfray e Dawkins estão se posicionando num plano cognitivo inadequado para fazer a discussão a respeito do dito de Ivan Karamázov.

De qualquer modo, há algo válido nas colocações de Onfray, principalmente em sua denúncia enfática a todas as formas de fanatismo religioso que assolam o mundo contemporâneo. Porém, ao levantar a bandeira das Luzes contra a religião em todas as suas formas e recorrendo aos irracionalistas Nietzsche e Freud como mentores intelectuais, Onfray parece estar navegando em águas perigosas, bem pouco iluministas. E, do mesmo modo que ele “psicanalisa” o sentimento religioso, reduzindo-o à pulsão de morte, sua própria posição poderia ser também “psicanalisada” e reduzida, quem sabe, à “pulsão de vida”. Dawkins parece ser mais comedido do que Onfray, pois se compromete com Darwin e não com Nietzsche e Freud. Todavia, como já indiquei, sua explicação evolucionista da religião – como sendo uma característica que não tem valor de sobrevivência por si só e sim como subproduto de outra característica que o tenha – é incompleta e não toca o elemento principal que a constitui: a experiência mística.

Uma coisa, porém, é certa: o debate está lançado no domínio público da conversação da humanidade e o que temos a fazer é tentar extrair o melhor dessa situação, sem acusações desnecessárias de fundamentalismo e com abertura de espírito suficiente para que a discussão possa ser levada a bom termo. Nada como uma atitude sadia de diálogo crítico, em que as partes envolvidas possam apresentar, sem coerções, suas opiniões a respeito de um tema tão importante como esse para o conhecimento de nós mesmos.

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