domingo, 1 de junho de 2008

O direito de caricaturar de Ronald Dworkin

Nesse texto o filósofo norte-americano, Ronald Dworkin, cuja área de estudos é o Direito, analisa a possibilidade de o humor não ser tido como passível de repressão violenta como tem acontecido quando o alvo do humor são as crenças religiosas, em especial, e cita o caso das caricaturas no jornal dinamarquês, que alguns muçulmanos imputaram ser do profeta Mohammed. É interessante observar que em regimes autoritários e totalitários o principal inimigo é a possibilidade de o humor servir de contraponto crítico. Daí porque qualquer atitude autoritária ou totalitária encare o humor como algo a ser duramente combatido. Alguns poderão objetar que há uma diferença entre humor, sarcasmo, escárnio e ridicularizar, mas a questão é: o quanto o uso do humor como forma legítima de livre expressão deva ser limitado devido àqueles que admitem crenças (quaisquer que sejam) considerarem o humor "abusivo"? Na Grécia Antiga o método irônico causou a condenação de Sócrates. O limite entre o ofensivo e o expressivo é uma construção delicada nas relações entre os que pensam e agem diferentemente.


19 de Março de 2006 · Opinião

O direito de ridicularizar

Ronald Dworkin
Universidade de Nova Iorque

A imprensa britânica e americana fizeram bem, no cômputo geral, em não reproduzir as caricaturas dinamarquesas que foram objecto do protesto de milhões de muçulmanos furiosos, recorrendo à destruição violenta e terrível um pouco por todo o mundo. Reproduzir as caricaturas teria muito provavelmente como resultado — e pode ainda ter esse resultado — que mais pessoas seriam mortas e mais propriedade seria destruída. Teria causado muito sofrimento a muitos muçulmanos britânicos e americanos porque os outros muçulmanos lhes teriam dito que a publicação das caricaturas tinha por objectivo mostrar desprezo pela sua religião, e ainda que tal impressão tivesse sido, na maior parte dos casos, incorrecta e injustificada, o sofrimento seria, contudo, genuíno. É verdade que os leitores e telespectadores que têm seguido esta história podem muito bem ter desejado ajuizar por si o impacto, humor e grau de ofensa das caricaturas, pelo que a imprensa pode ter sentido que tinha o dever de lhes dar essa oportunidade. Mas o público não tem o direito de ler ou ver o que quer independentemente do preço a pagar, e as caricaturas, em qualquer caso, estão facilmente disponíveis na Internet.

Por vezes, a autocensura da imprensa significa uma perda de informação, argumento, literatura ou arte de valor, mas isso não aconteceu neste caso. Não publicar as caricaturas pode dar uma vitória aos fanáticos e às autoridades que instigaram os protestos violentos e, portanto, pode incitá-los a adoptar tácticas semelhantes no futuro. Mas há fortes provas de que a onda de tumultos e destruição — subitamente, quatro meses depois de as caricaturas terem sido publicadas — foi orquestrada por líderes muçulmanos da Dinamarca e do médio oriente que têm razões políticas mais abrangentes. Se esta análise estiver correcta, manter o tema na ordem do dia, voltando a reproduzir as caricaturas, estaria de facto a servir os interesses dos responsáveis pela violência e a recompensar as suas estratégias de encorajar a violência.

Há um perigo real, contudo, de que a decisão da imprensa britânica e americana de não reproduzir as caricaturas, apesar de sábia, será erradamente tomada como uma aceitação da opinião largamente partilhada de que a liberdade de expressão tem limites, que tem de se conter face às virtudes do "multiculturalismo", e que o governo de Blair tinha afinal razão ao propor que seja um crime publicar algo que seja visto como "abusivo ou insultuoso" por qualquer grupo religioso.

A liberdade de expressão não é apenas um emblema especial da cultura ocidental, que a distingue das outras, e que se pode generosamente limitar ou qualificar como medida de respeito por outras culturas que a rejeitam, do mesmo modo que se pode adicionar um crescente islâmico ou uma estrela judaica a um estandarte religioso cristão. A liberdade de expressão é uma condição do governo legítimo. As leis e as políticas não são legítimas a menos que tenham sido adoptadas através de um processo democrático, e um processo não é democrático se o governo impediu qualquer pessoa de expressar as suas convicções sobre o que tais leis e políticas devem ser.

Ridicularizar é uma forma característica de expressão; a sua substância não pode ser traduzida numa forma retórica menos ofensiva sem expressar algo muito diferente do que se pretendia. É por isso que as caricaturas e outras formas de ridicularizar têm estado, ao longo dos séculos, mesmo quando era ilegal, entre as mais importantes armas tanto de movimentos políticos nobres como corruptos.

Assim, numa democracia, seja poderoso ou impotente, ninguém pode ter o direito de não ser insultado ou ofendido. Este princípio é de particular importância numa nação que procura arduamente a justiça racial e étnica. Se as minorias fracas ou impopulares querem ser protegidas por lei contra a discriminação económica ou legal — se querem leis que proíbam que sejam discriminados no que respeita ao emprego, por exemplo — têm de estar dispostos a tolerar sejam quais forem os insultos ou as ridicularizações que as pessoas que se opõem a tal legislação oferecem aos eleitores, porque só uma comunidade que permite tal insulto como parte do debate público pode ter a legitimidade para adoptar tais leis. Se queremos que os fanáticos aceitem o veredicto da maioria depois de esta o declarar, então temos de permitir que exprimam o seu fanatismo no processo cujo veredicto lhes pedimos que aceitem. Seja o que for que o multiculturalismo signifique — seja o que for que signifique um maior "respeito" por todos os cidadãos e grupos — estas virtudes anular-se-iam a si mesmas se as concebêssemos de modo a justificar a censura oficial.

Os muçulmanos que ficaram indignados com as caricaturas dinamarquesas sublinham que em muitos países europeus é um crime negar publicamente, como fez o presidente do Irão, a existência do Holocausto. Dizem que a preocupação do ocidente com a liberdade de expressão é apenas uma hipocrisia interesseira, e têm razão. Mas é claro que o remédio não é comprometer ainda mais a legitimidade democrática, mas encontrar uma nova compreensão da Convenção Europeia sobre os Direitos Humanos que veja a lei contra a negação do Holocausto, e outras semelhantes, em toda a Europa, como o que realmente são: violações da liberdade de expressão que essa convenção exige.

Diz-se muitas vezes que a religião é especial porque as convicções religiosas das pessoas são tão centrais para as suas personalidades que não se deve pedir-lhes que tolerem quem ridiculariza as suas crenças, e porque podem sentir que têm o dever religioso de contra-atacar perante o que tomam como sacrílego. O Reino Unido aceitou aparentemente essa perspectiva, pois continua a considerar a blasfémia como um crime, ainda que apenas no caso de insultos ao cristianismo. Mas não podemos abrir uma excepção para o insulto religioso se quisermos usar a lei para proteger outros aspectos do livre exercício da religião. Se queremos proibir a polícia de, ao fazer buscas especiais, se concentrar nas pessoas que parecem muçulmanas ou se vestem como tal, por exemplo, não podemos ao mesmo tempo proibir as pessoas de se opor a essa política invocando, em caricaturas ou por outros meios, que o islamismo é sinónimo de terrorismo, por mais disparatada consideremos tal opinião. Devemos certamente criticar o juízo e o bom-gosto de tais pessoas. Mas é a religião que tem de observar os princípios da democracia — e não o contrário. Não se pode permitir que religião alguma faça leis para todas as pessoas sobre o que se pode ou não desenhar, tal como não se pode permitir que possa fazer leis para toda a gente sobre o que se pode ou não comer. Nenhumas convicções religiosas podem sobrepor-se à liberdade que torna a democracia possível.

Ronald Dworkin

Tradução de Desidério Murcho
Publicado em The New York Review of Books (23 de Março de 2006)

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